
Quando, depois do golpe militar de 1964, a Pannair foi fechada, meu pai ficou consternado. Já não trabalhava mais lá. Tinha sua própria agência de turismo , uma das primeiras e mais bonitas do Brasil. Mas, me lembro bem dele inconformado com o golpe , com o encerramento da Pannair e com a deposição do presidente João Goulart. Gostava do Jango. Identificava-se com ele. Eram gaúchos , da mesma geração, casados com mulheres complicads e lindas. Gostava de como o Jango conduzia a política, achava que as reformas precisavam acontecer para que o país pudesse ser mais justo. Às vezes eu ficava sentada nos degraus da escada, nas altas horas, ouvido atrás da porta da sala de jantar, as discussões acaloradas de meus pais com meus tios, que eram totalmente a favor do golpe, que eles chamavam de 'revolução'. Quando aprendi o que era socialismo na escola, me identifiquei e passei a compreender o que meus pais admiravam tanto no Jango. Eu era socialista. Eu também 'era Jango'. E discutia na escola, mesmo sendo proibido falar de política.
No Carnaval de 1967 papai resolveu que iríamos conhecer o lugar onde ele tinha nascido - Pelotas- e a cidadezinha onde tinha se criado - Jaguarão. Depois, iríamos a Montevideo e Punta del Leste, atravessando de trem a fronteira.
Um dia, em Punta del Leste, ele acordou agitado. Apressava mamãe, nos apressava a mim e minhas irmãs, para que nos aprontássemos logo, e andava de um lado pro outro, e fumava e, bah! que vamos logo com isso!
Fomos até um bonito bairro de casas modernas sobre gramados bem cuidados. Não havia ninguém transitando pelas ruas limpas e arborizadas. Notei que papai, mais do que tenso, estava nervoso. Descemos em frente a uma dessas casas. E , mamãe, tentando ser natural, disse, assim como quem não quer nada, que papai tinha uma encomenda pra entregar pro Jango. Arregalei o olho. Mas... calei diante do olhar fulminante dela. A casa era boa mas simples. Térrea, tipo moderna dos anos 50, com uma varandinha na entrada, de mureta baixa e chão de cerâmica São Caetano vermelha . Quem estava nos esperando era a Maria Tereza. Linda! Umas feições muito delicadas, pele morena, olhos verdes rasgados, cabelo liso castanho , preso num coque. Usava calça de verão amarela clara, tipo cigarrette, e uma camisa branca de manga curta. E roía muito as unhas. Sugeriu que sentássemos ali no chão da varandinha porque o Jango estava um pouco atrasado, mas já vinha. Meu pai não aguentou. Foi pra esquina esperar. Minha mãe, minhas duas irmãs, eu e Maria Tereza, sentamos ali mesmo.Ela não falava nada. Nem nós. Lembro do olhar de soslaio que minha mãe lançava pra ela. Meio de admiração, meio 'porra, porque essa mulhar não fala com a gente'. De repente, lá vem meu pai devagar, conversando baixo com Jango. Levantei e o coração batia mais rápido. Jango veio soridente. Achei que ele estava 'meio triste'. Hoje diria que estava abatido. Meu pai, ainda tenso, mas já com um ar de satisfação, uma expressão de alívio, talvez, no meio sorriso. Nos apresentou. Eu apertei e mão dele, dizendo 'muito prazer, meu presidente!' .Ele riu largo e me fez uma carinho no queixo. Foi só então que percebi um grande envelope pardo nas mãos do meu pai e uma caixinha de veludo comprida. Primeiro, Jango abriu a caixinha. Era uma caneta Parker de ouro que papai dava de presente pra ele. Senti tanto orgulho do meu pai naquela hora... Depois, Jango abriu a porta da entrada que estava trancada à chave e meu pai, com um olhar, combinou com a minha mãe que nós ficaríamos lá fora, na varandinha. Maria Tereza, pra ser gentil, ficou conosco e conversou algumas amenidades com mamãe. Um tempo depois, saíram papai e Jango lá de dentro. Reparei que o envelope não estava mais à vista. Jango abraçou fortemete papai e agradeceu várias vezes. 'Que é isso, presidente... que é isso!'.
Não sei até hoje o que havia no envelope. Documentos? Dinheiro? Provas? Meu pai morreu no Natal daquele mesmo ano. Minha mãe também não sabia o que havia no envelope. Mesmo sendo um 'cidadão acima de qualquer suspeita', um comerciante rico do ramo de turismo, um típico sírio libanês, dono de um cadillac branco , de um apartamento de cobertura no Flamengo e outro de 500 metros quadrados de frente pro mar do Leme, dono da agência mais bonita do Brasil no centro do Rio, de um sítio em Jacarepaguá e mais alguns terrenos em Araruama, ele correu sérios riscos. Mas era um homem justo. E de convicções. E do signo de Áries. Um jeito ele ia dar. Um jeito ele deu. Como deu jeito de conseguir visto de entrada no Brasil pro Pablo Neruda. E de saída do Brasil pro Jorge Amado. Ficou muito rico por esforço próprio, trabalhando duro desde muito jovem. Mas era de esquerda e Flamengo.