quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Minha casa tem mangueiras onde canta a sabiá

           Até o Cadillac entrar na Rua João Borges, na Gávea, ela estava bem. Não desconfiava de nada. Eu estava sentada no banco de trás, ao lado dela, e também acreditava que aquilo seria apenas um passeio vespertino. Eu tinha dez anos e tinha sido convidada, pela minha madrinha e pelo meu pai, para um passeio de carro numa bonita tarde de sábado, quase verão. Nada de mais.
           Ela era tão bonita! Se eu tinha dez, ela tinha trinta anos. Uma menina. Era a minha mãe, que eu amava e temia. Amava quando ela estava alegre, engraçada, brilhante, sentia o maior orgulho daquela mulher vibrante, moderna, que minhas colegas invejavam e queriam que as mães delas fossem como a minha. Eu  porém  guardava um segredo não confessado às amigas. Que  em outros momentos eu a temia. Era quando, subitamente, o olhar dela se tornava duro, os gestos brutos, seu humor se tornava incontrolável e com uma força incomum, eu a via arrancar arandelas da parede e querer jogar pela janela do décimo primeiro andar, eu a via pegar um cinto no armário, ou um chinelo, ou o que estivesse à mão para nos bater, numa fúria e força que não combinavam com suas feições delicadas, como seu tipo mignon , com a doçura de seu olhos cor de mel. Era quando  altas da noite acordávamos, minhas duas irmãs mais novas e eu, com a gritaria infernal pela casa, quebradeira e sustos. Um dia vi meu pai com os olhos molhados, tentando em vão controlá-la. Nunca tinha visto meu pai chorar. Aquilo me deu uma dimensão do tamanho do problema que tínhamos ali. Meu pai, amoroso e bom, apaixonado por ela, meu pai que ‘resolvia todos os problemas do mundo’, desesperando.
           Durante um período frequentou a nossa casa um homem quase sósia do Juscelino, o Doutor Veloso. Diziam que vinha fazer análise na mamãe. E ela dizia que ‘dava voltas nele’, que ela era quem o analisava. Ela mesma dizia que análise com ela não adiantava porque ela era muito mais inteligente que o doutor Veloso.

          Naquele dia , lembro da mudança em seu olhar que vinha distraído admirando as bonitas árvores do bairro da Gávea, quando o carro fez a curva à direita e entramos na Rua João Borges. Até então vínhamos rindo e conversando , ela falava qualquer coisa comigo quando se deu conta do trajeto. Sempre fui atenta às suas mudanças. Essa atenção muitas vezes me livrou de sofrimentos maiores. Agora seu olhar vasculhava de um lado para o outro. Chegou pra frente no banco e perguntava nervosa, onde a estavam levando. Na hora eu também me senti traída. Eu também não sabia onde ‘a estavam levando’. Não tinha ideia desse lugar para ‘onde a estavam levando’ mas, pela reação dela, deveria ser um terrível lugar. Minha madrinha, irmã dela, sentada ao lado do meu pai  no banco da frente, falava qualquer coisa como vai ser bom pra você, pense nas meninas ( Em mim? Por quê?), é só um tempo, você vai se curar, vai melhorar, e o carro subia por aquela rua íngreme , sinuosa, arborizada, de poucas casarões, uma das lindas e silenciosas do alto da Gávea.
Eu amava todo mundo ali naquele carro. Sabia que todos se amavam também. Confiava no meu pai, no amor que ele tinha por nós e pela minha mãe. Confiava na minha madrinha, irmã mais velha da minha mãe, que me amava como se eu fosse a filha que ela não havia podido ter. O que estaria acontecendo? Um sentimento de estar sendo igualmente enganada por duas pessoas que eu amava e que me davam amor e segurança me paralisou. Entendi que eu, ali, era o álibi para que minha mãe não desconfiasse que a estavam levando para um lugar terrível.
       A casa que surgiu no alto e no fim da rua era grande, bonita e toda branca. Parecia um casarão de fazenda. Ou um hotel. Era a Clínica São Vicente que à época tratava pessoas com transtornos psiquiátricos. No desespero dela reconheci a trapaça. Agora ela se abraçava a mim e pedia a mim, que não a deixassem levar, internar, afastar. Eu olhava para os outros dois adultos tentando entender. Do meu pai eu só via as costas e a nuca. Suas mãos continuavam no volante. As duas. Petrificado. Talvez estivesse chorando. Minha madrinha virava-se para nós, no banco de trás, e continuava a argumentar que seria melhor pra mamãe, que eu precisava compreender ( Eu? Compreender? Compreender o quê??), que eles iam saber tratar dela, que sonoterapia era um tratamento moderno  e eficaz para o problema dela. Foi a primeira vez que ouvi o termo. Sonoterapia. Acho que na hora não me pareceu mau: dormir, descansar, ser cuidada e tratada naquela casa bonita com cara de hotel no meio da Mata Atlântica silenciosa e exuberante. Talvez  depois ela não sofresse mais. Talvez depois meu pai não chorasse mais. Talvez  depois minhas irmãs agradecessem essa minha traição. Depois. Porque, na hora em que os enfermeiros a puxaram de dentro do carro literalmente a arrancando dos meus braços de menina, na hora em que eu a vi num relance ainda com os braços estendidos pra mim, resistindo aos enfermeiros, eu me senti infame, covarde, medrosa por não ter gritado, não ter me agarrado a ela, esperneado, feito um escândalo que impedisse que a levassem. O carro arrancou rápido. Meu coração pulava. Eu tinha tido pouco tempo para entender tudo. Entender que eu tinha sido usada. Mesmo que  nas melhores intenções. Eu tinha sido usada para internarem a minha mãe num lugar que ela tinha horror. Não me lembro das palavras exatas da Madrinha mas ela tentava me consolar. Perguntei por quanto tempo ela ficaria lá. Não muito, foi o que me respondeu.
            Depois vieram os dias de visita. Sentimentos contraditórios e perturbadores. Por um lado eu tinha saudades e queria vê-la. Por outro, as horas em que eu estava lá se arrastavam sem nada pra dizer  a não ser que estávamos todos bem, que na escola tudo também ia bem, que continuávamos, eu e as irmãs , a ir ao balé, que comíamos direitinho...ela não tinha o que falar, o que contar ela que era tão falante, engraçada, cheia de assuntos e novidades, ficava com olhar vidrado, de mãos dadas comigo. Olhávamos a mata em silêncio, sentadas num banquinho na lateral da casa de onde dava para ver entre as árvores um pouco da Lagoa.  Eu sentia o cheiro da mata e achava igual ao cheiro de pimentão cortado. Uma sabiá cantava. E ela tapou os ouvidos, sempre em slow motion, mas visivelmente irritada: eu não agüento ouvir mais isso, é o dia inteiro, esse lugar maldito só tem esse priii, prii, eu não agüento mais eu não agüento mais eu não agüento mais....  
        Havia coisas que eu podia contar e havia outras que não. Fui fazer uma visita nas vésperas do meu aniversário de onze anos. Fui muito recomendada pela Madrinha a não comentar o fato e a negar sempre se ela insistisse em perguntar. Porque ela iria quer sair para comemorar e isso ainda não era possível. Pois foi a primeira coisa que ela me perguntou. Eu ainda estava no corredor que levava aos quartos quando ela abriu a porta e veio sorrindo e dizendo  seu aniversário é depois de amanhã! Eu disse que não, que ainda faltava muito. Não mente pra mim, Ana Cristina! Eu não estou louca e sem muito bem quando é o seu aniversário e ele é depois de amanhã!! Me senti péssima ali, no corredor branco e ensolarado da Clínica Sã Vicente.
         Uma vez eu cheguei e ela estava deitada no quarto em penumbra. Já sonolenta, falava arrastado e aquilo me dava vontade de sair correndo dali. Havia uma enfermeira que eu não suportava, como se ela fosse a responsável pela clausura da minha mãe. Essa mulher usava um avental branco engomadíssimo , que cobria um vestido uniforme azul marinho, sapatos imaculados e touca de enfermeira engomada nos cabelos pretos, com uma mecha branca. Tinha voz macia e sorria. Gostava de me elogiar e isso me aborrecia ainda mais. Nesse dia , pediu para prender os meus cabelos num coque banana, como “as velhas” usavam na época. Ela caprichou. E demorou. Conseguiu prender tudo com um só grampo. Que eu tirei com um só gesto, depois que ela havia exibido sua ‘obra’ pra mamãe já quase apagada.
Ela me olhou, pela primeira vez sem sorrir, e me deixou fazendo companhia pra mamãe que agora parecia anestesiada. Peguei meu livro e fiquei num canto lendo. Passado um tempo, minha mãe começou a fazer um barulho esquisito, como se roncasse, como se estivesse engasgando. Cheguei a me encaminhar pra porta quando a Enfermeira apareceu. De novo sorria aquele sorriso odioso e me dizia que agora eu precisava sair. O barulho do ronco se tornava mais alto. Ainda quis permanecer mas ela foi me empurrando pra fora, dizendo que precisava “fazer os procedimentos”. 
      Mais tarde, quando o mesmo aconteceu só que em casa, aprendi que ela estava entrando no choque da insulina, que precisava ser interrompido. Ela chegou de surpresa , no meio da tarde. Fazia calor. Devia ser começo de dezembro. Chegou linda , agitada e animada. A Laura, a babá mais que babá que cuidava de nós, ficou agoniada. Mamãe tinha fugido da Clínica. Fiquei assombrada. Que mulher incrível essa minha mãe! Rebelde, tinha conseguido driblar todo mundo e tinha fugido!! Admiração e muito medo. Vontade que ela não voltasse mais praquele limbo e medo, muito medo intuitivo do que poderia acontecer. Logo ela fechou as cortinas do quarto, ligou o ar condicionado e disse que ia deitar um pouco. Pela preocupação da Laura eu vi que alguma coisa estava muito errada. Laura mandou eu ficar sentada na poltrona do quarto ‘fazendo companhia’, enquanto ela tentava localizar papai, ou a Madrinha ou alguém que se responsabilizasse. Andava atônita pra lá e pra cá, chamando nossa senhora aparecida. Gelei. Os roncos começaram. Eu não conhecia ‘os procedimentos’ e estava sozinha no quarto com ela. Foi quando Laura entrou no quarto com um suco de laranja com muito açúcar, dizendo que a tinham orientado a virar aquele suco goela abaixo da minha mãe. E pediu a minha ajuda. Mamãe ali enrijecida e com os dentes trancados. Não havia o que fazer para que ela ingerisse o suco. Minha irmã de oito anos apareceu e as três gritávamos tentando acordá-la para que bebesse o bendito suco salvador. Aos poucos , fomos conseguindo derramar, de pouquinho em pouquinho, o suco entre os dentes, que mais escorria pelos lábios do que entrava, Laura segurando a cabeça dela para que não se afogasse e eu virava devagar o copo.
Chegaram pessoas de branco e nos tiraram do quarto.
       No Natal daquele ano, ela já tinha recebido alta. Vestia um vestido vermelho mas estava estranhamente lenta, falando devagar, sorriso bobo, e bem mais gorda. Quando as pessoas a elogiavam, ela sorria aquele sorriso meio idiota e alisava as pregas do vestido.
      Não nos bateu mais durante um tempo. Não tinha mais os ataques inesperados de destruição. Não atirava mais os pratos de louça Rosenthal, cheios de comida, no chão. Parecia uma boneca de pilha, com a pilha gasta. Durante um bom tempo, vivemos essa tristeza no ar. A paz no centro do ciclone.

Não sei bem quando, mas tudo voltou ao anormal.

Agora ouço novamente a sabiá cantando sua cantiga de gaitinha quando a primavera se aproxima.
Em outra época era lembrança muito triste.

Hoje é a lembrança do dia em que me libertei daquela lembrança triste, no divã da analista.