
Ela era tão bonita! Se eu tinha dez, ela tinha trinta anos.
Uma menina. Era a minha mãe, que eu amava e temia. Amava quando ela estava alegre,
engraçada, brilhante, sentia o maior orgulho daquela mulher vibrante, moderna,
que minhas colegas invejavam e queriam que as mães delas fossem como a minha.
Eu porém guardava um segredo não confessado às amigas.
Que em outros momentos eu a temia. Era
quando, subitamente, o olhar dela se tornava duro, os gestos brutos, seu humor
se tornava incontrolável e com uma força incomum, eu a via arrancar arandelas
da parede e querer jogar pela janela do décimo primeiro andar, eu a via pegar
um cinto no armário, ou um chinelo, ou o que estivesse à mão para nos bater,
numa fúria e força que não combinavam com suas feições delicadas, como seu tipo
mignon , com a doçura de seu olhos cor de mel. Era quando altas da noite acordávamos, minhas duas irmãs
mais novas e eu, com a gritaria infernal pela casa, quebradeira e sustos. Um
dia vi meu pai com os olhos molhados, tentando em vão controlá-la. Nunca tinha
visto meu pai chorar. Aquilo me deu uma dimensão do tamanho do problema que
tínhamos ali. Meu pai, amoroso e bom, apaixonado por ela, meu pai que ‘resolvia
todos os problemas do mundo’, desesperando.
Durante um período frequentou a nossa casa um homem quase
sósia do Juscelino, o Doutor Veloso. Diziam que vinha fazer análise na mamãe. E
ela dizia que ‘dava voltas nele’, que ela era quem o analisava. Ela mesma dizia
que análise com ela não adiantava porque ela era muito mais inteligente que o
doutor Veloso.
Naquele dia , lembro da mudança em seu olhar que vinha
distraído admirando as bonitas árvores do bairro da Gávea, quando o carro fez a
curva à direita e entramos na Rua João Borges. Até então vínhamos rindo e
conversando , ela falava qualquer coisa comigo quando se deu conta do trajeto.
Sempre fui atenta às suas mudanças. Essa atenção muitas vezes me livrou de
sofrimentos maiores. Agora seu olhar vasculhava de um lado para o outro. Chegou
pra frente no banco e perguntava nervosa, onde a estavam levando. Na hora eu
também me senti traída. Eu também não sabia onde ‘a estavam levando’. Não tinha
ideia desse lugar para ‘onde a estavam levando’ mas, pela reação dela, deveria
ser um terrível lugar. Minha madrinha, irmã dela, sentada ao lado do meu pai no banco da frente, falava qualquer coisa como
vai ser bom pra você, pense nas meninas ( Em mim? Por quê?), é só um tempo,
você vai se curar, vai melhorar, e o carro subia por aquela rua íngreme ,
sinuosa, arborizada, de poucas casarões, uma das lindas e silenciosas do alto
da Gávea.
Eu amava todo mundo ali naquele carro. Sabia que todos se
amavam também. Confiava no meu pai, no amor que ele tinha por nós e pela minha
mãe. Confiava na minha madrinha, irmã mais velha da minha mãe, que me amava
como se eu fosse a filha que ela não havia podido ter. O que estaria
acontecendo? Um sentimento de estar sendo igualmente enganada por duas pessoas
que eu amava e que me davam amor e segurança me paralisou. Entendi que eu, ali,
era o álibi para que minha mãe não desconfiasse que a estavam levando para um
lugar terrível.
A casa que surgiu no alto e no fim da rua era grande, bonita
e toda branca. Parecia um casarão de fazenda. Ou um hotel. Era a Clínica São
Vicente que à época tratava pessoas com transtornos psiquiátricos. No desespero
dela reconheci a trapaça. Agora ela se abraçava a mim e pedia a mim, que não a
deixassem levar, internar, afastar. Eu olhava para os outros dois adultos
tentando entender. Do meu pai eu só via as costas e a nuca. Suas mãos
continuavam no volante. As duas. Petrificado. Talvez estivesse chorando. Minha
madrinha virava-se para nós, no banco de trás, e continuava a argumentar que
seria melhor pra mamãe, que eu precisava compreender ( Eu? Compreender?
Compreender o quê??), que eles iam saber tratar dela, que sonoterapia era um
tratamento moderno e eficaz para o
problema dela. Foi a primeira vez que ouvi o termo. Sonoterapia. Acho que na
hora não me pareceu mau: dormir, descansar, ser cuidada e tratada naquela casa
bonita com cara de hotel no meio da Mata Atlântica silenciosa e exuberante.
Talvez depois ela não sofresse mais.
Talvez depois meu pai não chorasse mais. Talvez
depois minhas irmãs agradecessem essa minha traição. Depois. Porque, na
hora em que os enfermeiros a puxaram de dentro do carro literalmente a
arrancando dos meus braços de menina, na hora em que eu a vi num relance ainda
com os braços estendidos pra mim, resistindo aos enfermeiros, eu me senti
infame, covarde, medrosa por não ter gritado, não ter me agarrado a ela,
esperneado, feito um escândalo que impedisse que a levassem. O carro arrancou
rápido. Meu coração pulava. Eu tinha tido pouco tempo para entender tudo.
Entender que eu tinha sido usada. Mesmo que
nas melhores intenções. Eu tinha sido usada para internarem a minha mãe
num lugar que ela tinha horror. Não me lembro das palavras exatas da Madrinha
mas ela tentava me consolar. Perguntei por quanto tempo ela ficaria lá. Não
muito, foi o que me respondeu.
Depois vieram os dias de visita. Sentimentos contraditórios
e perturbadores. Por um lado eu tinha saudades e queria vê-la. Por outro, as
horas em que eu estava lá se arrastavam sem nada pra dizer a não ser que estávamos todos bem, que na
escola tudo também ia bem, que continuávamos, eu e as irmãs , a ir ao balé, que
comíamos direitinho...ela não tinha o que falar, o que contar ela que era tão
falante, engraçada, cheia de assuntos e novidades, ficava com olhar vidrado, de
mãos dadas comigo. Olhávamos a mata em silêncio, sentadas num banquinho na
lateral da casa de onde dava para ver entre as árvores um pouco da Lagoa. Eu sentia o cheiro da mata e achava igual ao
cheiro de pimentão cortado. Uma sabiá cantava. E ela tapou os ouvidos, sempre
em slow motion, mas visivelmente irritada: eu não agüento ouvir mais isso, é o
dia inteiro, esse lugar maldito só tem esse priii, prii, eu não agüento mais eu
não agüento mais eu não agüento mais....
Havia coisas que eu podia contar e havia outras que não. Fui
fazer uma visita nas vésperas do meu aniversário de onze anos. Fui muito
recomendada pela Madrinha a não comentar o fato e a negar sempre se ela
insistisse em
perguntar. Porque ela iria quer sair para comemorar e isso
ainda não era possível. Pois foi a primeira coisa que ela me perguntou. Eu
ainda estava no corredor que levava aos quartos quando ela abriu a porta e veio
sorrindo e dizendo seu aniversário é
depois de amanhã! Eu disse que não, que ainda faltava muito. Não mente pra mim,
Ana Cristina! Eu não estou louca e sem muito bem quando é o seu aniversário e
ele é depois de amanhã!! Me senti péssima ali, no corredor branco e ensolarado
da Clínica Sã Vicente.
Uma vez eu cheguei e ela estava deitada no quarto em penumbra. Já
sonolenta, falava arrastado e aquilo me dava vontade de sair correndo dali.
Havia uma enfermeira que eu não suportava, como se ela fosse a responsável pela
clausura da minha mãe. Essa mulher usava um avental branco engomadíssimo , que
cobria um vestido uniforme azul marinho, sapatos imaculados e touca de
enfermeira engomada nos cabelos pretos, com uma mecha branca. Tinha voz macia e
sorria. Gostava de me elogiar e isso me aborrecia ainda mais. Nesse dia , pediu
para prender os meus cabelos num coque banana, como “as velhas” usavam na
época. Ela caprichou. E demorou. Conseguiu prender tudo com um só grampo. Que
eu tirei com um só gesto, depois que ela havia exibido sua ‘obra’ pra mamãe já
quase apagada.
Ela me olhou, pela primeira vez sem sorrir, e me deixou
fazendo companhia pra mamãe que agora parecia anestesiada. Peguei meu livro e
fiquei num canto lendo. Passado um tempo, minha mãe começou a fazer um barulho
esquisito, como se roncasse, como se estivesse engasgando. Cheguei a me
encaminhar pra porta quando a Enfermeira apareceu. De novo sorria aquele
sorriso odioso e me dizia que agora eu precisava sair. O barulho do ronco se
tornava mais alto. Ainda quis permanecer mas ela foi me empurrando pra fora,
dizendo que precisava “fazer os procedimentos”.
Mais tarde, quando o mesmo
aconteceu só que em casa, aprendi que ela estava entrando no choque da
insulina, que precisava ser interrompido. Ela chegou de surpresa , no
meio da tarde. Fazia calor. Devia ser começo de dezembro. Chegou linda ,
agitada e animada. A Laura, a babá mais que babá que cuidava de nós, ficou
agoniada. Mamãe tinha fugido da Clínica. Fiquei assombrada. Que mulher incrível
essa minha mãe! Rebelde, tinha conseguido driblar todo mundo e tinha fugido!!
Admiração e muito medo. Vontade que ela não voltasse mais praquele limbo e
medo, muito medo intuitivo do que poderia acontecer. Logo ela fechou as
cortinas do quarto, ligou o ar condicionado e disse que ia deitar um pouco.
Pela preocupação da Laura eu vi que alguma coisa estava muito errada. Laura
mandou eu ficar sentada na poltrona do quarto ‘fazendo companhia’, enquanto ela
tentava localizar papai, ou a Madrinha ou alguém que se responsabilizasse. Andava
atônita pra lá e pra cá, chamando nossa senhora aparecida. Gelei. Os roncos
começaram. Eu não conhecia ‘os procedimentos’ e estava sozinha no quarto com
ela. Foi quando Laura entrou no quarto com um suco de laranja com muito açúcar,
dizendo que a tinham orientado a virar aquele suco goela abaixo da minha mãe. E
pediu a minha ajuda. Mamãe ali enrijecida e com os dentes trancados. Não havia
o que fazer para que ela ingerisse o suco. Minha irmã de oito anos apareceu e
as três gritávamos tentando acordá-la para que bebesse o bendito suco salvador.
Aos poucos , fomos conseguindo derramar, de pouquinho em pouquinho, o suco
entre os dentes, que mais escorria pelos lábios do que entrava, Laura segurando
a cabeça dela para que não se afogasse e eu virava devagar o copo.
Chegaram pessoas de branco e nos tiraram do quarto.
Não sei bem quando, mas tudo voltou ao anormal.
Agora ouço novamente a sabiá cantando sua cantiga de
gaitinha quando a primavera se aproxima.
Em outra época era lembrança muito triste.
Hoje é a lembrança do dia em que me libertei daquela
lembrança triste, no divã da analista.