O dia em que completei dez anos, caiu num domingo.Lembro perfeitamente do céu azul sem nuvens que me convidavam à praia. Porém mamãe decidiu que iríamos minha irmã e eu, acompanhadas da babá, à missa das dez, na igreja da Santíssima Trindade , na mesma rua onde morávamos. Mamãe já há muito tempo não frequentava a missa mas nós tínhamos que ir de qualquer jeito, muitas vezes sob protestos, a praia, as brincadeiras ou o sono até mais tarde nos convidando para momentos muito mais prazeirosos do que ouvir as incompreensíveis engrolações do padre em latim, os joelhos doendo na posição contrita e a vontade de rir quando olhava de esguelha pra minha irmã e fazia uma careta pra provocar, a babá desesperada para que parássemos, para que nos comportássemos, e a proibição é que dava ainda mais vontade, o riso estourando bem na hora que o coroinha sacudia o sininho. Naquele dia não seria diferente. Era meu aniversário de dez anos, eu tinha que me confessar e comungar pra Deus me abençoar e os anjos me protegerem.
Então fomos.Eu estava me sentindo uma verdadeira moça, com uma saia branca e - oh, maravilha - uma sandália rasteira, de dedo, em formato triangular em cima do peito do pé, ornamentada com três moedas douradas gravadas no couro branco. Havia ganho de presente de aniversário. Um dos presentes. Mas foi o que mais me encantou. Eu pisava diferente.Eu era diferente com aquelas preciosidades nos meus pés.
A igreja, do ano de 1938, é de um estilo art déco sóbrio, imponente e alta, com fileiras de esculturas de santos de cada lado da nave, esculpidos em pedra clara, em tamanho natural, sobre pedestais. O chão de mármore preto e branco, faz desenhos quadrados geométricos, de acordo com o estilo. Ao fundo, atrás do altar, três janelas altas com vitrais , que filtram em cores o sol da manhã. Ainda recordo a luminosidade agradável dentro dela naquela manhã ensolarada de vinte e cinco de novembro , a igreja lotada para a missa das dez. Conseguimos um lugar mais pra frente, perto do confessionário à direita do altar. Levantei do banco, eu e minhas sandálias de moedas douradas e, pisando com cuidado, me sentindo importante e responsável, fui até o confessionário para conseguir a absolvição dos meus pecados, que eram sempre os mesmos, - briguei com a minha irmã, desobedeci à babá, esqueci de rezar antes de dormir, fiquei com preguiça de fazer o dever... - e comungar a hóstia dos meus dez anos de idade.
Às vezes o padre perguntava se eu tinha mentido pra mamãe, se eu a tinha desobedecido. Não, nunca. O padre não conhecia a mamãe...
A igreja estava silenciosa. Lembro de pessoas ajoelhadas, de mãos postas e cabeças abaixadas. Ajoelhei no confessionário e disse: bom dia padre; eu vim me confessar.
Silêncio.
Repeti a frase, um pouco mais alto, mas não muito, afinal estávamos na igreja onde tudo ecoa.
Silêncio.
Resolvi começar a falar assim mesmo, pensando se o padre estaria mesmo lá, ou se estaria dormindo, ou se era surdo. E falei. Que briguei com a minha irmã. Que desobedeci á babá. Que esqueci de rezar antes de dormir. Que tive preguiça de fazer o dever.
Silêncio.
Me benzi e pedi perdão a Deus, já que o padre não se manifestava.
Levantei devagar.
Dei três passos quando ecoou por toda igreja o grito do padre:
V O L T A A Q U I, QUE EU AINDA NÃO LHE DEI AS PENITÊNCIAAA...AAAA....AAAA....AAASSS..............
Algumas cabeças viraram para me olhar. Senti meu rosto pegar fogo e os olhos encherem d'água na hora.
Saí correndo. A igreja crescia em comprimento e o barulho das lindas sandálias novas, de couro branco e moedas douradas batendo no chão de mármore de quadrados preto e branco, me parecia ensurdecedor. As pessoas me olhando e eu pensando que elas deveriam estar pensando no tamanho dos meus pecados, para que aquele maldito padre berrasse daquele jeito.Quando cheguei finalmente na rua é que percebi que a babá tinha vindo a correr, arrastando a minha irmã de sete anos pela mão. Eu chorava e repetia que nunca mais, nunca mais, nunca mais.
Não houve jeito. Briguei com a missa, briguei com a religião, briguei com Deus. Nem adiantou minha mãe me levar no dia seguinte até à sacristia pra falar com o padre. Quem estava lá era um outro, bem mais novo, que pediu desculpas dizendo que , na véspera, quem estava no confessionário era um senhor muito idoso e que, além de não ouvir bem, às vezes cochilava.
Nunca mais me confessei.