sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Recado de Mãe

Rio, 5 de dezembro de 1988

Filha amada e mais que amada. Existe? Se existir, tu és. Ainda há pouco vendo-te caminhar por minha calçada, toda emperdigadinha, pisando firme sem hesitar, mas somente da cintura pra baixo pois, acima da cintura, apesar das costa retas que costumas ter, teus ombros pareciam mais estreitos e até meio caídos. Estes não são os teus ombros, minha filha...Talvez tua imagem fosse uma perspectiva enganosa pra quem não te conheça além da embalagem. Porém a mim...tu não enganas e  o sabes bem, pois sabiamente nem tentas.
O que tu não sabes e nem estás intuindo é o quanto estou a todo segundo com o pensamento tomado por ti; tua aflição me contagia e acho que sou a única pessoa que te compreende, conhece e te dá razão. Machuca-me demais ter que fazer a "forçuda", tentando minorar tua tristeza "lourde" e tão cheia de razão. Tu não sabes o quanto, o quão profundo mesmo esse contágio me traz pra perto de ti. As pessoas da nossa volta perdem a paciência comigo quando pego tua bandeira de razão e parto quixotescamente em tua defesa. É bem como dizias há pouco, '"no dos outros é refresco".
Quando te vi te afastar, meu coração aos pulos ( saca quando o puto vai pras bochechas e engasga mesmo entre as amídalas? então...) lembrou-se exatamente de quando te olhei certa vez da janela da Francisco Sá e tinhas dois anos, mas já eras uma sábia grega, de imensos olhos muito idosos, e caminhavas pela mão da babá alemã. Percebi que estavas sofrendo, só não entendia ainda porque e, mesmo assim, berrei do oitavo andar para que esperassem, e desci ridícula, com um barrigão de quase nove meses - que depois nos traria Ana Elisa - de chinelo , indo te alcançar rua acima. Ajoelhei-me na tua frente e a tua boquita tinha uma expressão de dor. Elevaste um pezinho e vi o sapatinho de verniz preto e, compreendendo qual era a tua dor, berrei pra D. Judith, que era babá e era enfermeira e era alemã intransigente, "este sapato eu já tinha separado pra dar, não serve mais nela, dói no pé"! Vi teus olhos cheios d'água e ,a vergonha de chorar na rua, te fez tremer a boquinha. A alemã respondeu " o sapato está novinho, é fita de criança!" Ali mesmo, contigo no colo sobre o barrigão, eu a despedi e te levei pra casa, esbaforida, pra livrar-te da dor. E me tentas esconder a dor desde os dois anos...Só porque não tenho mais vinte e três anos? Só porque os cabelos hoje já estão brancos? Fico eu aqui na minha janela, já sem berrar, já sem emitir nenhum som com medo de te aborrecer, respeitando a tua maturidade, fico aqui e te espero apenas com o barulho de meus pensamentos desordenados porque aflitos e cheios de prece, que acabo dizendo pela metade, que a agonia dá uma puta amnésia. Mas ainda me dá vontade de te beijar e dizer "já passou, já passou", como quando eu assoprava teus dodóis de moleca. Pois é, deixa eu assoprar , faz de conta que eu ainda sirvo pra alguma coisa. Repetes tanto que eu não sei de nada, que não posso resolver nada e acabas por negar que eu exista por vontade ou opinião. Tudo bem, como queiras. Mas perdoa minha ansiedade, perdoa também todas as vezes que te invadi a vida na pretensão de ajudar. Vamos conversar, Comade?? Just like old times... once upon a time, como nos "Duck Tales" que você me contava com seu perfeito inglês aos seis anos de idade, aquelas  historinhas que Miss Fernanda da British School te ensinava. Ou como quando você me pedia pra te contar uma história, mas sem "aí" e sem" então".
Solta teu riso favelado, Kalú, aquela explosão de verão que era tua silhueta de menina feliz, dourada de sol, cheirosa de mar e óleos vários, a juba cheia de conchinhas de teus prendedores de cabelo... Entra do novo aqui, tu e tua turba álacre, o bando alegre que te acompanhava: o Samurai Laerte,a Mila (será que ela ainda tem os pés secos?), a Vera à toa, o Mané belezinha, a Reg, a Jade, a Angela, a Tica, o Edinho, o João,a  Raquel, a porteña Adriana e seu Fix Obélix, o Clô e seu amigo Stephen que se encantou com a babá do Rodrigo ...que chegavam às 4 da tarde, numa galhofa meio culpada pelo atraso - que eu nem ligava-, destampando panelas de feijoada ou carurú, ou peixadas de coco, suspirando de fome! Volta pra tua vida, Pagú! Lembra? Rir era a segunda coisa que mais se fazia, porque beber cerveja era a primeira, claro!
 Eu fico remoendo a vida, ou talvez ruminando seja o termo.
Hoje não tem mais feijoada.
Acabou o lombinho bêbado com abacaxi.
Quebrou o manjar de coco.
Sem hommos nem m'jâdra.
Nem tabuleiro de bolo de banana.
Filha adorada, você era uma nêga Flamengo que só não se chamava Teresa. Tinha um fusca e um violão. E paixão.Era todo um carnaval. 
Canto pra ti todos os cantares da Gabriela Cravo e Canela:  traga tua "menina de volta ao seu quintal de goiabas, seu andar marinheiro, seu alegre cantar, por quê a queres mudar?"
O quê fizeste Sultão , da minha alegre menina???
A vida não mudou. Eu não mudei por dentro. Vamos rir de novo com aquela sede de anteontem. Afasta de mim esse cálice, que esse silêncio todo me atordoa.