12/10/1968
Não me lembro a primeira vez que ouvi Hey Jude. Mas
certamente, naquele outubro de 1968, eu já tinha ouvido o mais recente
lançamento dos Beatles : eu era assídua ouvinte da Rádio Mundial, rádio de
vanguarda na época, e que tinha um programa só dedicado aos Beatles às 5:30 da tarde. Inclusive Hey Jude já havia sido
lançada num compacto simples, capa de
papel amarelinho, com Revolution no lado B. Comprei, é claro.
Obviamente Hey Jude tocaria algumas vezes naquela noite na
Fonte da Saudade, no aniversário de uma amiga que ia ser comemorado num salão de festas dentro de um terreno ajardinado. Hoje essa propriedade não existe mais. No local há um grande prédio
de tijolinhos no centro do terreno que ainda mantem um belo jardim em volta. Moro perto: é meu caminho de ida e volta para
Lagoa Rodrigo de Freitas e, toda vez que passo ali, me lembro daquela noite, da
música, da festa, da casa, e do Moço Escorpiano que mudou minha vida.
Era próximo da meia noite.
Na verdade eu tinha ido à festa na esperança de encontrar um
ex namorado. Havíamos terminado o namoro em julho e ele sempre deixava no ar a
possibilidade de voltarmos. Mas já era quase meia noite e ele não chegava.
Comentei com uma amiga que eu não o esperaria mais. O prazo que eu dava era
aquele, meia noite do dia 12 de outubro de 1968. Um prazo pra sempre. Nunca
mais. O meu ponto de não retorno.
Foi nesse momento que ergui os olhos e era como se tivesse
acabado de entrar na festa. Os ouvidos se concentraram na música que começava a
tocar: Hey Jude. Meus olhos encontraram dois olhos negros lá do outro lado do
salão. Era um moço bonito. Vi que o moço bonito, muito bonito, esquio, com um
ar decidido, atravessava a sala firme na minha direção. Estendeu a mão e me tirou
pra dançar. Dançamos Hey Jude inteira, conversando, e mais outra e outra...
Depois tocou um samba da Mangueira e fui sambar com um amigo . Me trouxeram uma
vassoura que serviu de bandeira e meu amigo, com uma tampa de caixa de sapato
para se abanar, fazia o meu mestre sala.
O Moço dos Olhos Negros me pediu o telefone.
O ex namorado me ligou no dia seguinte para explicar que o
carro dele, um DKW, tinha enguiçado não sei onde.
Mas Hey Jude ainda tocava no meu coração...
21/04/1990
Eu morava sozinha em Jacarepaguá. Já havia me divorciado do Moço
Escorpiano dos Olhos Negros e também do Professor Lukácsiano.
Paul McCartney havia se apresentado na véspera no Maracanã
debaixo de uma grossa chuva. Mas o dia agora estava lindo, límpido e fresco. Eu
estava em casa e ouvia a Rádio Cidade. O locutor então começou a falar
empolgadíssimo sobre o show do Macca na véspera, que tinha sido histórico, que
ninguém podia perder, que ainda havia ingressos, que o final era apoteótico com
Hey Jude...
Vesti minha ‘roupa de multidões’ – calça jeans, camiseta,
tênis, documentos em um bolso, dinheiro trocado em outro – roupa de comícios,
manifestações e shows, até hoje.
Ainda tentei achar uma companhia mas ninguém queria se
aventurar. Saí sozinha, peguei o 240
(que a gente chamava Dois Quarenta) na Pau Ferro e fui pro Maracanã. Cheguei às
3 da tarde e havia duas filas gigantescas: uma pra comprar o ingresso e outra
pra entrar no estádio. Fiquei mais de uma hora pra comprar e, depois, fui andando,
andando, andando, procurando o fim da fila pra entrar. Na metade do caminho
alguém me chamou Criiiissss!!!! Estamos aqui!!! Era uma aluna da ETEC que, me
vendo sozinha, fez como se tivéssemos marcado de nos encontrar, porque, furar
fila naquele momento, dava tiro porrada e bomba. Entrei na fila com eles ali.
Ainda eram umas 5 da tarde. Os portões só abririam às 7 da noite. Todos
conversavam animados e, de vez em quando, um grupo começava a cantar uma das
músicas dos Beatles que se espalhava pela fila em coral animado. Fiquei com um
cara chamado Clemente que estava por ali. Era médico. Parecíamos dois
adolescentes beatlemaníacos, nós que já estávamos com 39. Beijos bons, mãos
dadas e canções. Não tínhamos canetas pra anotar telefones. Eu disse o meu e
ele achou que ia guardar. E eu o perdi pra sempre na hora que abriram os
portões. Um estouro de boiada e 184 mil pessoas se espremiam pra entrar pelas
catracas. Fui erguida por não sei quem, amparada do outro lado por outras mãos
desconhecidas, ainda procurei Clemente, chamei pelo nome dele, mas fui sendo
levada pela multidão pra dentro do estádio. O gramado já estava repleto.
Resolvi ficar bem atrás, com a rota de saída a meu alcance. Sabia que o show
terminaria com Hey Jude e, assim que começassem os primeiros acordes, eu sairia
do estádio. Precisava pegar o Dois Quarenta de volta pra Jacarepaguá.
Cantei, pulei, dancei, chorei e ri sob um céu lindamente
estrelado.
Eu sabia que o Homem Escorpiano de Olhos Negros estava em
algum lugar, no meio daquela multidão, com o nosso filho que, então, tinha 16
anos. Talvez também se lembrasse de mim. Nunca soube.
Aos primeiros acordes de Hey Jude fui saindo sozinha, no
imenso estádio que tantas vezes frequentei em jogos do Flamengo com meu Noivo
Escorpiano de Olhos Negros. Saí sozinha cantando junto com o imenso coral que
se formara dentro do estádio. E chorando, claro.
Eu tinha visto o Paul.
Um Beatle tinha afinal vindo ao Brasil, coisa com a qual eu
sonhara a adolescência inteira. Já não havia mais Lennon mas tinha o Paul que
fazia um showzaço e que ‘sobrara pra contar a história’.
Cheguei no ponto do ônibus em frente à UERJ na hora do Na...nananananaaa...
Dancei sozinha, chorei e cantei tão alto quanto pude. O
Maraca vibrava na noite à minha frente. Daquela imensa boca voltada pro céu
estreado saía o coral mais bonito e apaixonado que eu já ouvira. E eu cantava
sozinha mas junto.
O ônibus apareceu
iluminado e quase vazio. O Dois Quarenta. Foi uma Long and Winding Road até
minha casa, que percorri chorando de mansinho.
16/ 09/2006
A caminho de Toledo
Estava na Espanha com um grupo de alunos-amigos já havia 8
dias. Levantamos cedinho e, como sempre naquela viagem, o dia estava lindo.
Pegamos o ônibus que nos levaria de Granada para Toledo. O guia explicou que a
Sierra Morena é que divide as regiões de Andalucia e La Mancha, rumo ao norte.
Já fui me despedindo dessa terra mágica prometendo voltar em breve! Passamos
por plantações de melão e de oliveira e pelos moinhos : La Mancha é a terra dos
moinhos e já avistávamos alguns ao longe.
Nessa hora eu estava sozinha na poltrona, vendo a Espanha
passando lá fora, as oliveiras, os moinhos, o meu sonho sendo realizado. No som
do ônibus, começou a tocar inesperadamente Hey Jude. Senti uma emoção tão grande que comecei a chorar.
As lembranças e sentimentos se misturavam no meu coração: estava conseguindo
realizar um sonho, havia trabalhado muito no Circuito das Artes produzindo
aquarelas e gravuras para isso, e , com o dinheiro ganho com o meu trabalho
como artista e professora, eu podia bancar meu sonho. Mas a isso tudo vinha
amarrada a tristeza profunda com a morte do Homem Escorpiano de Olhos Negros,
uma semana antes de eu embarcar. O fato de eu estar lá naquele momento devia-se
a eu ter escolhido essa outra vida lá em 1976, quando entrei pra faculdade de
arte e me divorciei dele. Me doeu muito profundamente pensar nele, nos sonhos
que tivemos, ele que parecia um espanhol, ele que me tirou pra dançar numa
noite de primavera, ele que me deu um filho, meu único filho que herdou dele os
olhos e o porte. Fui chorando até Toledo. Nessa estrada entre Granada e Toledo,
me despedi dele, da vida que tivemos e da que poderíamos ter tido juntos.
Toledo, Fonte da Saudade e Maracanã estarão sempre unidos em
Hey Jude.
7/09/2020
Esta casa que habito hoje não é minha. Há muito tempo que as
casas em que habito por uns tempos são de pessoas desconhecidas: pago a elas,
pontualmente e impessoalmente através de administradoras, pra isso.
Na sala atual nem os móveis são os mesmos de tempos atrás.
Apenas a arca azul foi da minha primeira casa, o apêzinho paulista no bairro de
Higienópolis, nosso apêzinho de recém casados, eu e meu Marido Escorpiano de
Olhos Negros.
Daqueles tempos, só eu e a arca azul, onde guardo copos de
cristal, uma meia dúzia ainda do jogo que ganhamos de casamento, estamos na
sala pra assistir “Narciso em Férias”, depoimento sensível , emocionante e
contundente do Caetano Veloso sobre quando esteve preso pela ditadura militar.
Ele canta Hey Jude e conta que , quando ouvia essa música
tocar vinda de um radinho do soldado que guardava as celas, ele entendia como
sendo uma mensagem de boa sorte e o coro final do nananananaaa, fazia com que ele
vislumbrasse as portas e grades do cárcere se abrindo.
Emocionada, levantei e busquei uma das taças dentro da arca
azul. Bebi um vinho e brindei a todas as portas e grades que se abriram pra mim
e ainda se abrem, porque meus ombros "não carregam mais o mundo" e aprendi, também com a canção, que "o movimento que eu preciso está justamente nos meus ombros".
O Resto é Nanananah e o caminho ainda a percorrer.