sexta-feira, 29 de junho de 2012

Sonho de Valsa é Humano, Demasiado Humano


"Onde reside a inocência? Onde há vontade de engendrar? E aquele que criar o que o ultrapassa é, a meus olhos, aquele cujo querer é mais puro.
Onde reside a beleza? Onde todo o meu querer me obriga a  querer; onde quero amar e perecer para que uma determinada imagem se não mantenha unicamente uma imagem." (Nietzsche)






Esquina de São José com Av Rio Branco. Vinda de alguma exposição no Paço Imperial, espero o sinal abrir no metro quadrado mais pluviométrico do Rio de Janeiro. Os pingos dos ares condicionados de todos os milhares de escritórios acima das nossas cabeças não cessam neste dia de verão. Calor. Os ônibus. Os carros. As vans. Mais gente vai parando a meu lado sob aquela garoa maluca esperando o sinal abrir. Que dura uma eternidade. Observo os bombons Sonho de Valsa, expostos como rubis ao sol sobre a banca do camelô , debaixo da marquise. Calor. Não me apetecem.
Bem na esquina há uma pequena árvore tentando bravamente sobreviver plantada num quadrado de terra, protegida por um cercadinho de metal. Nesse quadrado de terra, embaixo dessa arvorezinha raquítica, estão duas meninas,  a menor deve ter uns três anos e , a maior, uns cinco. Esqueço o sinal . Elas brincam como se estivessem no quintal de casa, naquele metrinho quadrado de terra, na esquina da Av Rio Branco e Rua São José, sob uma arvorezinha raquítica como elas. Me dou conta que este é realmente o quintal da casa delas. Presto mais atenção. A menor lambe um papel de Sonho de Valsa e o esfrega num pedaço de madeira, resto de algum caixote. Lambe e esfrega. Repete o gesto várias vezes, concentrada. Então o rostinho se ilumina e ela mostra para a outra Olha que lindo!!! Olhaaa! Que linnnndoooo!!! Faz também. O papel prateado do bombom, umedecido,  deixava marcas prateadas na madeira. O sinal abriu e fechou novamente. Mas eu estava vendo as meninas sonharem suas gravuras.

domingo, 10 de junho de 2012

No Tempo da Delicadeza

É necessário um cuidado extremo na lida com os sentimentos que envolvem aquele homem, pois a qualidade deles é de uma delicadíssima fragilidade .
Tão frágil, que suspende o fôlego. Tão intensa, que emudece. Tão incontrolável, que interrompe qualquer sensatez.
Cada letra escrita por ele, cada palavra dita por ele, desvelam universos incandescentes e incompreensivelmente enigmáticos para as pequenas luzes da razão.
Perguntar-me porquê, perdeu o sentido há tempos. Perguntar-me para quê, rendeu folhas e mais folhas de aquarelas e gravuras, que hoje cantam seu amor colorido em diversas paredes pelo mundo. Páginas e mais páginas de cadernos, preenchidos na solidão das noites ruivas. Palavras e mais palavras gravadas a fogo em outras memórias, que acolheram as faíscas cintilantes desses meus sentimentos frágeis por aquele homem. Sem nem saberem que ele existe.
Mas ele está lá. Sendo acolhido por pessoas que nem imagina. Transmutado em verso, cores, arrepios, olhos marejados. Imortalizado temporariamente em fragmentos de sonhos dos outros e outras com quem eu vou encontrando pelos meus caminhos.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Ainda não sei explicar


Hoje me pus a pensar em que momento eu comecei a me interessar pela arte. Melhor: em que momento eu comecei a me emocionar com a arte e pela arte. Qual a lembrança mais remota desse sentir tão quase dor, essa vontade perigosa de viver-criar-viver urgentemente. Porque, desenhar, toda criança desenha e eu já devia desenhar também, desde o jardim da infância na British School. Mas a necessidade, a tristeza que não se sabe de onde, a maturação lenta e dolorosa da imagem se formando ...na mente? no coração que dispara? na alma? no corpo todo?
E a lembrança veio inteirinha, viva.
Minha tia e madrinha estudava canto com um certo professor Talbat. As aulas eram no apartamento dele , creio que em Botafogo. E, às vezes, eu a acompanhava. Eu tinha por volta dos dez anos. Penso hoje que não devia ser um programa dos mais atraentes para uma menina da minha idade, que adorava praia, sentar quieta num sofazinho, por uma hora e meia, ouvindo a tia treinar as escalas, os trinados, e cantar umas canções incompreensíveis. O que me animava no início, eram as pastilhas de alcaçuz que ela chupava antes das aulas para clarear a voz, como ela dizia. Vinham numa caixinha que abria feito uma gavetinha. Eram pretas, com uma textura de jujuba, e na forma de um búzio. Às vezes ,em outras ocasiões, eu lembrava daquelas pastilhas e pedia que ela me desse uma. Jamais. Só ganhava uma, ao acompanhá-la às aulas de canto. Eram importadas e raras. E não eram balas, me dizia.
Até que um dia, eu reparei num quadro que tinha na parede da sala do professor Talbat. Era uma tela não muito grande, de uma paisagem. Como se o pintor estivesse em cima de um morro e pintasse o rio que corria lá embaixo. Esse rio era margeado , dos dois lados, por uma floresta fechada. O horizonte sugeria um fim de tarde sereno, com céu azul pálido. O rio fazia uma curva leve para a direita e se embrenhava na mata novamente. Não lembro em qual das vezes, se da segunda, terceira ou quarta ,em que sentei naquele sofazinho, eu percebi o quadro. So sei que, a partir do momento em que eu tomei consciência dele, as idas às aulas de canto do 'Messiê' Talbat eram momentos esperados com ansiedade. Para estar perto daquela imagem. Porque, enquanto o 'Messiê' tocava piano e minha tia, que tinha uma bela voz de contralto,cantava, eu viajava naquelas águas , às vezes num barco à velas, às vezes percorrendo a pé as margens sombrias e frias, os pés úmidos ao pisar as folhas caídas. Principalmente me intrigava o que haveria depois da curva. Um castelo em ruínas. Uma cachoeira caindo em precipício. Um príncipe a cavalo. Um pirata invencível.Tribos de índios. Uma praia com um navio naufragado. Imaginava que, quando chegasse lá , na curva do rio, já seria noite, porque meu barco nunca era a motor e, às vezes, era mesmo uma canoa a remo.
Aquela pintura me fazia habitar histórias incríveis, repletas de imagens, uma capacidade de inventar, criar e recriar, que até então eu deconhecia por completo. Ainda por cima, com a incrível trilha sonora de belas árias, acompanhadas pelo piano correto do francês Talbat. Eu não podia mais existir sem isso. Pra mim, aquele era o quadro mais lindo do mundo e ficar muito tempo distante dele era como se eu perdesse o dom de imaginar tantas aventuras. Por isso me lembro tão bem dele, até hoje. Como se eu o tivesse visto ontem, na parede em frente ao sofazinho, no apartamento de Botafogo. Olhava para ele o tempo todo que duravam as aulas, também para trazê-lo para dentro de mim, para que ele se tornasse parte de mim, para que ele se transformasse na fonte eterna daquele sentimento experimentado. Sentimento de arrebatamento estático, de um quase transe, quando não me importava mais nada que não fizesse parte daquela minha vida dentro da imagem do rio correndo no meio de uma floresta verde e sombria. A paixão da alma de uma menina de dez anos.
A partir dessa idade é que passei a pedir caixas de lápis de cor e cadernos de desenho, fora do material escolar. Minha tia e madrinha foi quem me deu uma caixa enorme de Caran D'Ache e um belo caderno de papel canson, com uma capa lisa preta. Achei chique aquela capa lisa preta. Digna de artistas.
Foi então que descobri que a Arte, em todas as suas formas, me conectava com o que eu sentia diante da pintura da casa do professor de canto. O que eu sentia, continuo sentindo ainda hoje, às vezes com um filme, com uma música,com um livro e quando crio textos , imagens, desenhos, pinturas. Ainda hoje, me sinto em perigo.
O que eu sentia, ainda não sei explicar.

"Só o que se pensa é que se pode comunicar aos outros.
O que se sente não se pode comunicar.
Só se pode comunicar o valor do que se sente.
Só se pode fazer sentir o que se sente. (...)
O sentimento abre as portas da prisão com que o pensamento fecha a alma.
A lucidez só deve chegar ao limiar da alma.
Nas próprias antecâmaras do sentimento é proibido ser explícito.
Sentir é compreender.
Pensar é errar.
Compreender o que outra pessoa pensa é discordar dela.
Compreender o que outra pessoa sente é ser ela.
Ser outra pessoa é de uma grande utilidade metafísica.Deus é toda gente."
Fernando Pessoa

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Os Sete Samurais




Laerte, meu amigo nissei-paulistano-artista-violeiro-corinthiano, estava recebendo 6 japoneses vindos diretamente de Tóquio, para gravar um disco de música brasileira aqui no Rio. O cantor,  eles já tinham e veio junto: um cara jovem, cabelinho espetadinho de gel, camisão verde água com risquinhos gráficos em tons néon, grandes e quadrados óculos de aro vermelho, calça clara e sapatênis. Era a estrela do grupo. Com toda essa pinta new wave, auge da moda em 1987, ele cantava i-gual-zi-nho ao Paulinho da Viola. ‘ Não quero maaaaais...amaraninguém!...”, fazendo um gesto largo com a mão direita e a esquerda no bolso da calça. Além da letra das músicas, ele não falava uma palavra de português. Tinham todos vindo ao Rio por um dilema surgido lá do outro lado do mundo : não havia japonês que conseguisse tocar pandeiro com o ritmo dos brasileiros. Precisavam de um pandeiro autêntico, o tal auxílio luxuoso que já dizia o Melodia. Sem pandeiro, não dá. Como eu entro nessa história? O Laerte me pediu para ajudá-lo na recepção aos japas, que passariam de janeiro a fevereiro aqui, aproveitando também pra irem à Sapucaí ver a Mangueira. Eram TODOS Mangueirenses. Entre uma gravação e outra, eu deveria levá-los a passeios, shows, sugerir restaurantes, coisa e tal. Eu havia trazido comigo de São Paulo o meu fusquinha, meu inseparável e fiel escudeiro, o famoso Boy da Mooca, amarelo manga, ‘c’ôs vidro rrrêibãn e as rrroda de magnésio, mâno!’. Então, era ir colocando o que coubesse de japa dentro do Boy e, o resto ia de táxi atrás, tipo siga aquele fusca.
No grupo havia o Jim Nakahara, que falava melhor inglês e com quem eu mais me comunicava. Era o produtor do disco. Conversas que vão e vem, ele me contou que dirigia uma revista só de música brasileira em Tóquio. Tudo começou quando ele tinha 18 anos e estava ouvindo o radinho em casa enquanto estudava, quando tocou a 'música mais linda do mundo'. A voz do homem que cantava era celestial, a melodia belíssima e nostálgica, que o mergulhou em um estado de alma que ele ainda não havia experimentado. Um encantamento, uma necessidade de ouvir aquilo pra sempre, uma urgência de saber tudo sobre aquela música, da qual ele não compreendia uma só palavra. Ligou pra rádio. Era um cantor negro, do Brasil e a música se chamava Ponta de Areia. Durante anos, Jim tentou assistir a um show do Milton ao vivo, mas sempre se desencontravam. Jim chegava em Berlim, e o Milton tinha ido embora na véspera. Quando Milton foi a Tóquio, Jim estava em Paris. Enquanto eu ouvia o relato, mal aguentava pra dizer ao Jim: então, my friend, você vai finalmente ver um show do Homem. Esta semana , no Maracanãzinho, Milton , Wagner Tiso, Novelli e mais uma galera, vão comemorar 20 anos de Travessia. E nós vamos!
E fomos.
Maracanãzinho completamente lotado. Eu , Tica e os Sete Samurais sentamos na arquibancada bem de frente pro palco. Platéia enlouquecida, saía de um silêncio abissal enquanto as músicas eram tocadas, para uma explosão ensurdecedora de gritos, aplausos, assovios, euteamos, silenciando outra vez aos novos acordes. O acender de isqueiros (naquele tempo não tinha celular, gente...) trazia o céu pro chão. Claro que o Milton cantou Ponta de Areia à capela. E o Jim Nakahara , do meu lado, chorou emocionadíssimo. 
Saímos de lá , Tica , eu e os japas. Entra um, entra dois, entra três, entra quatro no fusca. O resto pegou um táxi.  Viemos cantando pelo caminho em estado de euforia total. Foi quando um dos Samurais, que não me lembro mais o nome e que estava sentado no banco do carona, se debruçou metade pra fora do carro e gritou Huriiiiiiiiishiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!! , bem quando a gente estava no Túnel Rebouças rumo a Ipanema. E aquele fusca bizarro passava pelo túnel gritando Hurishiiiii  que, pelo que me disseram, significa estou feliz. Huriiiiishiiiiiiii!!!! Huriiiiiiiiishiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!! 
Fomos pro Garota de Ipanema, esquina de Vinicius com Prudente ( Para os antigos, Veloso, esquina de Montenegro com Prudente), que obviamente estava lotado. Atravessamos a rua e pegamos uma mesa grande num bar que se chama 'Vinicius' mas que todo mundo chama de Niterói. Porque é do outro lado. Os Samurais estavam impossíveis. Eram a atração do Niterói. Cantavam , batucavam, o Japa New Wave fez a sua performance de Paulinho da Viola. Lá pelas tantas, começaram a cantar o samba da Mangueira do ano anterior: “ Tem ximxim e acarajé, tamborim e samba no pé..” Daí , re-al-men-te o bar parou. Sete Samurais cantando, batucando e dizendo: ‘bréque'... é surreal demais , mesmo pro Rio de Janeiro onde ninguém repara em mais nada faz tempo. Na outra mesa um sujeito comentou com a mulher: Cara, eu acho que eu já bebi demais...
Muito anos depois, uns vinte talvez, num sábado à tarde, eu estava caminhando pela orla de Ipanema e resolvi voltar a pé pra casa pela orla da Lagoa. Cortei caminho pela Vinícius. Na frente da lojinha Toca do Vinícius -onde se vende TUDO sobre bossa nova- tinha um aglomerado de gente, um microfone, uns músicos, tudo isso na calçada. O dono da loja estava ao lado de um japonês...o Jim Nakahara! Não mudara nada. Camisa de malha, calça jeans, tênis e o cabelo comprido amarrado pra trás. No microfone disse que gostava muito da música brasileira, que era a vida dele. Pedia desculpas por não falar tão bem o português. Meu coração acelerou. Será que ele vai se lembrar de mim e daqueles dias malucos? Me arrependo até hoje de não ter ido lá conferir.

http://www.youtube.com/watch?v=aj4U5BvdTII