“J’ai trouvé la définition du Beau, de mon Beau. C’est quelque
chose
d’ardent
et triste, quelque chose d’un peu vague, laissant carrière
à
conjecture” ( Charles Baudelaire, 1851)
Ele e sua
família tinham–se mudado para o Rio de Janeiro, vindos do Norte. Na ocasião,
era um menino alto e muito magro para os seus doze anos e, no princípio,
estranhou esta nova cidade, o barulho dos inúmeros carros e suas buzinas, o som
dos bondes nos trilhos que passavam bem em frente ao portão do enorme casarão
de Botafogo. A cidade de onde tinha vindo era bem mais tranqüila, sombreada por
seculares mangueiras, imersa no calor equatoriano quase insuportável que
grudava tudo à pele, onde os encontros eram marcados para antes ou depois da
chuva. Um lugar impregnado de outros perfumes bem diferentes deste cheiro
adocicado da maresia que, a uma determinada hora da noite, ocupava densamente
os espaços, misturando-se aos jasmins do quintal do casarão, não o deixando
dormir, o peito apertado num sentimento desconhecido que, ao tornar-se homem,
reconheceu como melancolia. Sentia uma vaga sensação, como se invadisse
secretamente espaços proibidos, a Caverna de Tesouros do Ali Babá, As Minas do
Rei Salomão que vira no cinema, o interior da Basílica dourada de sua infância
onde se realizaram todos os casamentos, batizados, missas de bodas e de sétimo
dia de sua família, com seus amplos espaços e ecos. Esta nova cidade era de uma
beleza perturbadora assim como quase todas as pessoas a quem ia sendo
apresentado. Uma infinidade de tons de pele que variava da mais clara e rosada
porcelana ao negro mais azulado, diferente de sua região amazônica de peles
quase uniformemente morenas e espessas. Sua fisionomia de índio com o cabelo
muito liso e preto a cair-lhe na testa, não importando o quanto gastasse de
Gumex e horas esculpindo o topete, lembrava-lhe sempre sua condição de quase
estrangeiro neste país de países.
O sol da tarde
de verão batia em cheio na varanda comprida para onde se voltavam as janelas
dos quartos do casarão. As cigarras assobiavam muito alto. A mãe dele tinha
preparado um lanche de bolo de aipim e refresco gelado de laranja, colocado as
palmas vermelhas compradas de manhã, na feira, dentro do melhor vaso de
cristal, toalhas bordadas do enxoval, talheres de prata, separado boas roupas
para ele e para a irmã mais nova, supervisionado o banho deles, a água de
cheiro, o penteado, e estavam há horas, de acordo com a impaciência dele,
esperando imóveis, sentados no sofá de
palhinha da sala, para não suarem nem desarrumarem nada. A mãe tinha dito que
as pessoas desta cidade eram muito elegantes e não era absolutamente de bom tom
chegar pontualmente à hora marcada para um lanche na casa de outra pessoa.
Deveriam esperar quietos para não ficarem parecendo uns índios horrorosos e assustarem
as visitas. Mal conseguiram ouvir o sino do portão tocar, abafado pela
barulheira das cigarras.
A moça era muito
jovem e estava mesmo uma beleza naquele vestido de fustão amarelo de alça,
cintura muito fina apertada num cintinho branco, a saia rodada e, nos pés,
delicadas sandálias de couro branco. Ficou um bocado perturbado quando ela o
beijou várias vezes, dizendo que ele estava ficando um rapaz muito bonitão.
Nunca tinha sentido um perfume tão bom e nem visto uma pessoa tão bonita,
parecia uma artista do cinema americano, o cabelo de um preto azulado e, não
fosse pelos olhos cor de mel seria mesmo aquela atriz, só que os olhos daquela
eram cor de violeta. Sentiu-se feio, muito feio, com sua cara de índio
narigudo. Achou todos feios, como se a moça que acabara de chegar tivesse
tragado toda a beleza do mundo. Não desgrudava os olhos dela porque, quando
eles pousavam em outra pessoa era um choque, um contraste, um mal estar, um
horror. Ela trazia pela mão sua filhinha de dois anos, o mesmo cabelo escuro,
só que não possuía seus traços delicados de boneca: os olhos eram enormes de um
tom que, muitos anos mais tarde, ele classificaria de mel com menta, a
fisionomia lembrando a de um felino. Quando disseram para a menina que este era
o primo que ela viera conhecer, correu de braços abertos para ele e o
abraçou contente. Ficou comovido, agradecido por ela não ter tido medo dele e
de sua, agora imensa, feiúra. Levantou-a no colo e foram passear pelo
quintal, ela apontando flores, plantas, janelas, toalhas no varal. Falava tudo
e os olhos de gato não perdiam nada.
Depois não se lembrava mais da menina com clareza.
Sabia que sempre estivera lá nas páscoas, natais, aniversários.Porém, a
distância entre as idades deles não os fazia próximos.
Mas,
daquele dia, ele se lembrava bem: as famílias estavam reunidas no grande
apartamento do Comandante em Copacabana para um almoço com comidas do norte.
Ele já estava namorando a Vívian, ex miss Leblon, moça de ascendência italiana,
corpo escultural, de olhar macio e sorriso tímido. As famílias faziam mais
gosto do que ele neste noivado que já estava marcado para dali a alguns meses,
mas casamento era melhor que fosse assim mesmo, sem muita paixão, não. O
importante era que a moça fosse direita, de família conhecida e prendada,
preparada para administrar o lar, o marido e os filhos que, certamente, teriam.
Estavam esperando só a família do “Turco” chegar para servirem o Pato no Tucupi
que já estava recendendo da cozinha. Quando enfim chegaram, seus olhos
demoraram-se por mais tempo na mocinha que devia estar com uns quatorze anos.
Aquela criança engraçada e falante tinha-se tornado séria, não de uma seriedade
sisuda, mas aparentemente serena, e de uma beleza marcante que misturava
delicadezas da mãe e exotismos do pai. Tudo nela era de uma calma harmoniosa,
os gestos de curvas sinuosas, o andar sem barulho de quem desliza suave, sem
pressa, olhando cada coisa e cada pessoa na sua importância. A cabeleira negra
tinha sido contida, aparentemente a muito custo, em uma fivela na nuca, o que
lhe realçava o perfil bem desenhado e os olhos – que cor tinham esses olhos? A beleza, para ele,tinha mudado de eixo e significado.
Agora era só mistério. A mocinha tinha percebido seu olhar silencioso e oblíquo
de índio a acompanhar seus movimentos. Perturbou-se, pois para a adolescente
que ela era, ele aparecia como um homem muito mais velho, atleta conhecido por
sua cortada precisa e saque indefensável
nas competições interestaduais de vôlei. Era assim que o tinha visto uma vez:
o ginásio lotado nas finais de campeonato, a gritaria das torcidas, e ele
destacado dos outros pela mecha de cabelos brancos que nascia rente à fronte
direita, sobre os cabelos muito pretos e lisos. O rosto magro e anguloso
dava-lhe uma aparência de mais velho que seus vinte e cinco anos. Mas o corpo
esguio de longas pernas e tórax largo, o tornavam um homem extremamente
atraente, bem diferente do menino magrelo e desenxabido que ela conhecera. Não
achava possível que uma menina como ela pudesse despertar seu interesse, logo
ele, tão adulto, tão famoso, tão atleta, com uma namorada tão miss. Mas não se
enganara, ele a olhava sem discrição. Tinha até evitado circular pela sala onde
ele estava, um medo daquele olhar oblíquo e insistente.
De tempos em
tempos, ele se lembrava daquela Família de Cinema e perguntava à tia
dela, mulher do Comandante: “E a família do“Turco” ? E aquela filha dele, a
Bonita... como é mesmo o nome dela?” Como um colecionador obstinado, guardava
cada informação, vestígios dela, num álbum imaginário, onde formava seu próprio
mosaico.
O casamento dele
arrastara-se por vinte e dois anos. Não era feliz com a Vívian, eram muito
diferentes, ela era fria, quase distante, ele ardia, ansiava por correr mundo,
queria profissionalizar-se como atleta e ela vinha minando suas expectativas,
que ele fizesse logo um concurso para o Banco do Brasil, falava em segurança e
ele era um jogador, isso é besteira , vida de atleta neste país não dá sustento
e sossego a ninguém. Os rumos de sua vida estavam para sempre traçados: passara
no concurso do Banco, abandonara o esporte, tiveram um casal de gêmeos. Todos
os viam como uma família ideal. Vívian possuía mãos de ferro cobertas por luvas
de veludo. Era frágil e linda e dependente dele para absolutamente tudo. Mas
foi quem capitaneou sua vida como entendeu.
O almoço de
aniversário do pai tinha-se estendido, até a noite. A maioria dos convidados já
havia saído e seus pais arrumavam a mesinha de jogo para algumas partidas com o
inseparável casal de amigos, o Comandante e a mulher. Apoiou-se no parapeito da
janela sentindo o cheiro forte da maresia misturada à brisa jasminada dos
confins, olhando a praça iluminada lá embaixo, sábado à noite, as pessoas indo e vindo, músicas e risadas. O
Jangadeiro já estava ficando lotado. A mulher do Comandante olhou para
ele com imensa ternura, percebia seu abatimento após o divórcio sofrido.
Aproximou-se sem barulho, colocou a mão em suas costas magras, alisou-lhe os
cabelos tão precocemente embranquecidos. Ele sorriu, passou o braço sobre o
ombro da amiga tão querida e mais uma vez perguntou: __ “E aquela filha
do“Turco”, a Bonita...Como ela está?Continua bonita? Com aquele olho de tigre?”
A amiga sorriu: __“Continua, sim.” “Está sozinha?” “Está”.
E levou-a pra dançar num bar à beiramar de Copacabana.
A vida estava, novamente, recomeçando.
2 comentários:
Essas suas crônicas autobiográficas são uma delícia. Incrível como você descreve momentos tão comuns na vida de todos e ao mesmo tempo tão singulares. Só achei uma injustiça com a Ana Elisa você ser "A" filha bonita do turco...
eu era "A bonita" pro rapaz em questão... além do mais, ana elisa tinha 11 anos e ana teresa, 8! rsrsrs!
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