quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A BONITA



“J’ai trouvé la définition  du Beau, de mon Beau. C’est quelque chose
d’ardent et triste, quelque chose d’un peu vague, laissant carrière
à conjecture” ( Charles Baudelaire, 1851)

Ele e sua família tinham–se mudado para o Rio de Janeiro, vindos do Norte. Na ocasião, era um menino alto e muito magro para os seus doze anos e, no princípio, estranhou esta nova cidade, o barulho dos inúmeros carros e suas buzinas, o som dos bondes nos trilhos que passavam bem em frente ao portão do enorme casarão de Botafogo. A cidade de onde tinha vindo era bem mais tranqüila, sombreada por seculares mangueiras, imersa no calor equatoriano quase insuportável que grudava tudo à pele, onde os encontros eram marcados para antes ou depois da chuva. Um lugar impregnado de outros perfumes bem diferentes deste cheiro adocicado da maresia que, a uma determinada hora da noite, ocupava densamente os espaços, misturando-se aos jasmins do quintal do casarão, não o deixando dormir, o peito apertado num sentimento desconhecido que, ao tornar-se homem, reconheceu como melancolia. Sentia uma vaga sensação, como se invadisse secretamente espaços proibidos, a Caverna de Tesouros do Ali Babá, As Minas do Rei Salomão que vira no cinema, o interior da Basílica dourada de sua infância onde se realizaram todos os casamentos, batizados, missas de bodas e de sétimo dia de sua família, com seus amplos espaços e ecos. Esta nova cidade era de uma beleza perturbadora assim como quase todas as pessoas a quem ia sendo apresentado. Uma infinidade de tons de pele que variava da mais clara e rosada porcelana ao negro mais azulado, diferente de sua região amazônica de peles quase uniformemente morenas e espessas. Sua fisionomia de índio com o cabelo muito liso e preto a cair-lhe na testa, não importando o quanto gastasse de Gumex e horas esculpindo o topete, lembrava-lhe sempre sua condição de quase estrangeiro neste país de países.

O sol da tarde de verão batia em cheio na varanda comprida para onde se voltavam as janelas dos quartos do casarão. As cigarras assobiavam muito alto. A mãe dele tinha preparado um lanche de bolo de aipim e refresco gelado de laranja, colocado as palmas vermelhas compradas de manhã, na feira, dentro do melhor vaso de cristal, toalhas bordadas do enxoval, talheres de prata, separado boas roupas para ele e para a irmã mais nova, supervisionado o banho deles, a água de cheiro, o penteado, e estavam há horas, de acordo com a impaciência dele, esperando imóveis,  sentados no sofá de palhinha da sala, para não suarem nem desarrumarem nada. A mãe tinha dito que as pessoas desta cidade eram muito elegantes e não era absolutamente de bom tom chegar pontualmente à hora marcada para um lanche na casa de outra pessoa. Deveriam esperar quietos para não ficarem parecendo uns índios horrorosos e assustarem as visitas. Mal conseguiram ouvir o sino do portão tocar, abafado pela barulheira das cigarras.
A moça era muito jovem e estava mesmo uma beleza naquele vestido de fustão amarelo de alça, cintura muito fina apertada num cintinho branco, a saia rodada e, nos pés, delicadas sandálias de couro branco. Ficou um bocado perturbado quando ela o beijou várias vezes, dizendo que ele estava ficando um rapaz muito bonitão. Nunca tinha sentido um perfume tão bom e nem visto uma pessoa tão bonita, parecia uma artista do cinema americano, o cabelo de um preto azulado e, não fosse pelos olhos cor de mel seria mesmo aquela atriz, só que os olhos daquela eram cor de violeta. Sentiu-se feio, muito feio, com sua cara de índio narigudo. Achou todos feios, como se a moça que acabara de chegar tivesse tragado toda a beleza do mundo. Não desgrudava os olhos dela porque, quando eles pousavam em outra pessoa era um choque, um contraste, um mal estar, um horror. Ela trazia pela mão sua filhinha de dois anos, o mesmo cabelo escuro, só que não possuía seus traços delicados de boneca: os olhos eram enormes de um tom que, muitos anos mais tarde, ele classificaria de mel com menta, a fisionomia lembrando a de um felino. Quando disseram para a menina que este era o primo que ela viera conhecer, correu de braços abertos para ele e o abraçou contente. Ficou comovido, agradecido por ela não ter tido medo dele e de sua, agora imensa, feiúra. Levantou-a no colo e foram passear pelo quintal, ela apontando flores, plantas, janelas, toalhas no varal. Falava tudo e os olhos de gato não perdiam nada.

Depois não se lembrava mais da menina com clareza. Sabia que sempre estivera lá nas páscoas, natais, aniversários.Porém, a distância entre as idades deles não os fazia próximos.
Mas, daquele dia, ele se lembrava bem: as famílias estavam reunidas no grande apartamento do Comandante em Copacabana para um almoço com comidas do norte. Ele já estava namorando a Vívian, ex miss Leblon, moça de ascendência italiana, corpo escultural, de olhar macio e sorriso tímido. As famílias faziam mais gosto do que ele neste noivado que já estava marcado para dali a alguns meses, mas casamento era melhor que fosse assim mesmo, sem muita paixão, não. O importante era que a moça fosse direita, de família conhecida e prendada, preparada para administrar o lar, o marido e os filhos que, certamente, teriam. Estavam esperando só a família do “Turco” chegar para servirem o Pato no Tucupi que já estava recendendo da cozinha. Quando enfim chegaram, seus olhos demoraram-se por mais tempo na mocinha que devia estar com uns quatorze anos. Aquela criança engraçada e falante tinha-se tornado séria, não de uma seriedade sisuda, mas aparentemente serena, e de uma beleza marcante que misturava delicadezas da mãe e exotismos do pai. Tudo nela era de uma calma harmoniosa, os gestos de curvas sinuosas, o andar sem barulho de quem desliza suave, sem pressa, olhando cada coisa e cada pessoa na sua importância. A cabeleira negra tinha sido contida, aparentemente a muito custo, em uma fivela na nuca, o que lhe realçava o perfil bem desenhado e os olhos – que cor tinham esses olhos? A beleza, para ele,tinha mudado de eixo e significado. Agora era só mistério. A mocinha tinha percebido seu olhar silencioso e oblíquo de índio a acompanhar seus movimentos. Perturbou-se, pois para a adolescente que ela era, ele aparecia como um homem muito mais velho, atleta conhecido por sua cortada precisa  e saque indefensável nas competições interestaduais de vôlei. Era assim que o tinha visto uma vez: o ginásio lotado nas finais de campeonato, a gritaria das torcidas, e ele destacado dos outros pela mecha de cabelos brancos que nascia rente à fronte direita, sobre os cabelos muito pretos e lisos. O rosto magro e anguloso dava-lhe uma aparência de mais velho que seus vinte e cinco anos. Mas o corpo esguio de longas pernas e tórax largo, o tornavam um homem extremamente atraente, bem diferente do menino magrelo e desenxabido que ela conhecera. Não achava possível que uma menina como ela pudesse despertar seu interesse, logo ele, tão adulto, tão famoso, tão atleta, com uma namorada tão miss. Mas não se enganara, ele a olhava sem discrição. Tinha até evitado circular pela sala onde ele estava, um medo daquele olhar oblíquo e insistente.

De tempos em tempos, ele se lembrava daquela Família de Cinema e perguntava à tia dela, mulher do Comandante: “E a família do“Turco” ? E aquela filha dele, a Bonita... como é mesmo o nome dela?” Como um colecionador obstinado, guardava cada informação, vestígios dela, num álbum imaginário, onde formava seu próprio mosaico.
O casamento dele arrastara-se por vinte e dois anos. Não era feliz com a Vívian, eram muito diferentes, ela era fria, quase distante, ele ardia, ansiava por correr mundo, queria profissionalizar-se como atleta e ela vinha minando suas expectativas, que ele fizesse logo um concurso para o Banco do Brasil, falava em segurança e ele era um jogador, isso é besteira , vida de atleta neste país não dá sustento e sossego a ninguém. Os rumos de sua vida estavam para sempre traçados: passara no concurso do Banco, abandonara o esporte, tiveram um casal de gêmeos. Todos os viam como uma família ideal. Vívian possuía mãos de ferro cobertas por luvas de veludo. Era frágil e linda e dependente dele para absolutamente tudo. Mas foi quem capitaneou sua vida como entendeu.

O almoço de aniversário do pai tinha-se estendido, até a noite. A maioria dos convidados já havia saído e seus pais arrumavam a mesinha de jogo para algumas partidas com o inseparável casal de amigos, o Comandante e a mulher. Apoiou-se no parapeito da janela sentindo o cheiro forte da maresia misturada à brisa jasminada dos confins, olhando a praça iluminada lá embaixo, sábado à noite,  as pessoas indo e vindo, músicas e risadas. O Jangadeiro já estava ficando lotado. A mulher do Comandante olhou para ele com imensa ternura, percebia seu abatimento após o divórcio sofrido. Aproximou-se sem barulho, colocou a mão em suas costas magras, alisou-lhe os cabelos tão precocemente embranquecidos. Ele sorriu, passou o braço sobre o ombro da amiga tão querida e mais uma vez perguntou: __ “E aquela filha do“Turco”, a Bonita...Como ela está?Continua bonita? Com aquele olho de tigre?” A amiga sorriu: __“Continua, sim.” “Está sozinha?”  “Está”.

E levou-a pra dançar num bar à beiramar de Copacabana.
A vida estava, novamente, recomeçando.

2 comentários:

Jorge Puga de A. Lima disse...

Essas suas crônicas autobiográficas são uma delícia. Incrível como você descreve momentos tão comuns na vida de todos e ao mesmo tempo tão singulares. Só achei uma injustiça com a Ana Elisa você ser "A" filha bonita do turco...

Ana Cristina Nadruz disse...

eu era "A bonita" pro rapaz em questão... além do mais, ana elisa tinha 11 anos e ana teresa, 8! rsrsrs!