"Oh, somewhere in my mind there is a painting box
I have every color there, it's true
Just lately when I look inside my painting box
I seem to pick the colors of you" (Incredible String Band)
...e
tinha a casa velha do Sítio, com o quarto dos beliches e as canequinhas
de barro pra tomar o leite saído direto das tetas das vacas holandesas
da cocheira, malhadas de preto e branco e, enquanto o Gustavo montava
orgulhoso o Vió - era o único que conseguia -, nós dois imaginávamos
vinganças mirabolantes para fazer sofrer uma coelha que havia comido os
próprios filhotes e que, momentos antes, havíamos testemunhado, entre
curiosos e horrorizados, o hediondo crime daquela Medéia peluda, linda e
desalmada, mas já seguindo pelo meio do bosque de pinheiros até a Pedra
dos Sete Abutres - sem que nunca, mas nunquinha mesmo, tenha pousado um
abutrezinho sequer, nome que o Gustavo inventou, tirado de um filme de
caubóis - pra chegarmos no Pinheirão, que vocês meninos subiam até os
galhos mais altos, o bicho balançando, eu gritando aqui embaixo
desceeeeeedaíííí..., recostada nos galhos mais baixos, onde eu gostava
de ficar lendo meus romances até escurecer e as letras embaralharem, pra
depois saciarmos a interminável sede na fonte do Vovô ( penso que,
enquanto escrevo isso , ela ainda está lá, jorrando aquela preciosidade,
initerruptamente, talvez pra ninguém), correndo afogueados pra casa ao
ouvirmos o gongo chinês chamando pro almoço que a cozinheira Dona
Gertrudes já tinha aprontado pra nós e que cheirava tão gostoso a louro,
cominho, noz moscada, quando devorávamos o repolho roxo à moda alemã,
recém colhido na horta , feito com o Crema da Lêca que o caseiro alemão ,
seu Tremell, não conseguia chamar de creme de leite por nada nesse
mundo, devorávamos aquela comida fresca, natural e saborosa, na saleta
ao lado da sala de jantar, de pratarias inglesas e naturezas mortas do
Di Cavalcanti, na nossa saleta contigua à cozinha, onde podíamos rir e
brincar, e sair apressadamente em caravana armada de facões que os
meninos mais velhos levavam - Sebastião, Cláudio José, Augustozinho e
Gustavo - pra abrir o mato, e nós, os menores, você , eu e Otto
Alexandre ( por onde andará, meu Deus...) , pra mais tarde voltarmos
triunfantes com uma ossada, uma arcada de boi, que sonhávamos ser de
algum dinossauro - pequeno, na verdade - mas que , às gargalhadas ,
Dindinho contestou e garantiu que devia ser do touro mais temido, o
Stralsund, que tinha desaparecido misteriosamente há anos, o que já dava
um certo status pra nossa descoberta e motivou a criação de um pequen
museu de horrores na garagem, com aranhas bizarras, cobras jararacas e
corais, besouros e pedras que recolhíamos durante as horas perambuladas,
com a Taça do Gigante, nossa árvore adorada, a servir de guia, quando
subíamos os morros após as chuvas de janeiro em busca dos cogumelos
comestíveis escondidos nos troncos, que enriqueceriam as omeletes
douradas na hora do jantar, chegávamos até o Belvedere pra admirar a vista
da serra de Friburgo e a cidade de Teresópolis lá embaixo, descer mais
um pouco e esperar o por do sol no Banco da Estrela, pra ver a estrela
Vésper, que é a D'Alva, que é Vênus, e descer o morro na carreira, noite
fechada, cantando, em busca do fogo da lareira da casa nova, que o
Paulinho já havia aceso, essa casa nova,com cara de antiga,
cheia de conforto, beleza e arte, e aos domingos era tão triste ir
embora, despedir dos cachorros, o Alex - que era "meu" - e o Duke, que
era "teu", as cestas de verduras e frutas, os cremes e os queijos pra
levar, o último olhar do portão e o voo dos gansos rosados pela luz do
poente...e a nossa vida na cidade parecia insípida mas, vista daqui, nem
tanto, com todas as festinhas, a Hard Day's Night na vitrolinha e eu
ensinando a você e ao Eugen a dançar o iê iê iê no meu quarto na Senador
Vergueiro, 'preparando' vocês dois pra festa da Ana Elisa no Monte
Líbano, Sonny and Cher no maior volume ' It's Gonna Rain
Outsiiiiiiiiide, ôuôô', e These Boots Are Made For Walking, e
caminhamos, você com uma cara gozada, de óculos quadrados e cabelos
esticados na minha festa de quinze anos, black tie no Copa e, ainda "no
tempo em que se festejava o dia dos meus anos", você de calça Saint
Tropez, boca sino, cintão de couro, em outra foto onde estou super pop,
de cabelo chanel e mini saia pink, um mês antes da morte de seu Nassib,
a casa ainda com todos os enfeites do Natal, as frutas , as nozes, as
castanhas, o pinheiro, e as pessoas incrédulas, e as pessoas me dizendo
que eu 'precisava ser forte', o velório no São João Batista lotado, a missa
na Candelária, onde fiquei duas horas em pé, com a mamãe (tão linda,
tão jovem), e as meninas, recebendo os pêsames e sendo 'forte', e as
noites de terror que se seguiram, nas quais o rosto doce da tua mãe e a
força serena do Augustozinho, muitas vezes chegando ainda com a camisa
do pijama, para nos acompanhar, para nos serenar, para tentar trazer um
pouco de paz à mente tão turbilhonada da minha mãe, mas vida que segue, e
você com uma câmera foderosa na mão, se interessando por fotografia,
tirando fotos minhas no apê da Av Atlântica , pra fazer um 'poster' que o
Mauro, meu noivo na época, tinha encomendado e que você nunca entregou,
mas que tenho algumas ampliações e as provas contato até hoje, lembro
ainda da admiração e inveja que senti, quando você me mostrou um anúncio
da Escola Superior de Propaganda , em São Paulo, que havia sido
publicado no Pasquim, me dizendo que iria pra lá,pro Progresso, pra
Metrópole, pro Sucesso, sozinho pra cidade enorme, e eu senti que alguma
coisa da infância morria naquele instante, o meu companheiro quase
irmão quase gêmeo, assumindo uma vida longe de mim, mas você veio pro
meu casamento no Mosteiro de São Bento, o dia tão azul e quente de
dezembro, eu eu fui visitar a tua mãe, ainda vestida de noiva,internada
no Hospital São José, as enfermeiras, os médicos, os pacientes falando
pelos corredores "-a noiva! a noiva!", eu segurando o véu comprido e
correndo porque os convidados já me esperavam no almoço do Iate, e eu a
beijei e notei que os olhos dela estavam maiores e ela me pareceu, pela
primeira vez na vida, pequena e frágil e saí ventando, do modo que
entrei, para uma vida nova, na cidade enorme, eu também iria pra São
Paulo, na Metrópole eu me aventuraria, como você, meu quase irmão, quase
gêmeo, fui pra mesma Faculdade que você e curtíamos o banzo do Rio numa
padaria na esquina da Brigadeiro Luiz Antônio, tomando um expresso e
comendo croissants nos dias gélidos da paulicéia, e nesse início ainda
nos encontramos bastante no meu apêzinho da Brasílio Machado em
Higienópolis, muita cana Tirich Mirr com limão e mel, muita manga rosa,
muito Incredible String Band e Pink Floyd, e a TFP te acordando aos
domingos de manhã, na pensão da Rua Pará, gritando palavras de ordem e
empunhando estandartes em nome da tradição da família e da propriedade,
ao que você respondia tomando uma mescalina e desenhando imagens
delirantes e lindas, ainda lembro sua expressão , junto com a Bethinha,
os dois com cara-de-reis-magos-no-presépio, me vendo amamentar o
Rodrigo, depois a vida foi seguindo e só me lembro de te encontrar na
esquina da Paulista com a Consolação, numa noite abafada de Dezembro,
tínhamos assistido pela enésima vez Jules et Jim do Truffaut, sem saber
que estávamos na mesma sessão, nos encontramos na rua, eu quase sem voz,
afônica de cansaço, stress e tristeza, me joguei nos teus braços aos
prantos e te contei que eu estava indo embora de São Paulo, que estava
me separando, que estava indo pra casa da mamãe na rua Santa Clara, e
chorava e pedia pra você ir me visitar, e você não dizia nada só me
abraçava forte e fazia que sim com a cabeça, e eu entrei no meu
fusquinha, o famigerado Boy da Mooca, meio na contramão da rua, meio na
contramão da vida, e voltei pro Rio, dias depois, a Via Dutra ensolarada
e linda, me lembrou as figurinhas do sabonete Eucalol que a gente
colecionava na infância, eu e minha boca pintada, eu e meus delírios, eu
alambique - a cana, a pinga, o bagaço que eu mesma destilo, bebo , me embriago do que eu invento e processo, uma
pequena e rudimentar máquina a vapor que apita, chacoalha e sua, moto
contínuo e perpétuo da própria essência, patética e inútil, mas hoje,
tantos e tantos anos passados, pudemos nos encontrar para um almoço
absolutamente delicioso no Bar Urca, quando nem falamos de nada disso,
falamos das nossas vidas boas e realizadas, você em Sampa e eu no Rio,
La Felicitá.
Ponto.
sábado, 19 de janeiro de 2013
sexta-feira, 18 de janeiro de 2013
A Composição dará Forma à Criação
Reuni aqui ilustrações que criei nas páginas de uma agenda, quando iniciei a análise, em 1991.
Tinha assistido ao filme Asas do Desejo, de Wim Wenders, e criei um anjo pra me acompanhar na jornada.
No dia 18 de março daquele ano, escrevi na agenda:
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