sábado, 19 de janeiro de 2013

Como Dois Irmãos

"Oh, somewhere in my mind there is a painting box 
 I have every color there, it's true  
Just lately when I look inside my painting box 
I seem to pick the colors of you" (Incredible String Band)

...e tinha a casa velha do Sítio, com o quarto dos beliches e as canequinhas de barro pra tomar o leite saído direto das tetas das vacas holandesas da cocheira, malhadas de preto e branco e, enquanto o Gustavo montava orgulhoso o Vió - era o único que conseguia -, nós dois imaginávamos vinganças mirabolantes para fazer sofrer uma coelha que havia comido os próprios filhotes e que, momentos antes, havíamos testemunhado, entre curiosos e horrorizados, o hediondo crime daquela Medéia peluda, linda e desalmada, mas já seguindo pelo meio do bosque de pinheiros até a Pedra dos Sete Abutres - sem que nunca, mas nunquinha mesmo, tenha pousado um abutrezinho sequer, nome que o Gustavo inventou, tirado de um filme de caubóis - pra chegarmos no Pinheirão, que vocês meninos subiam até os galhos mais altos, o bicho balançando, eu gritando aqui embaixo desceeeeeedaíííí..., recostada nos galhos mais baixos, onde eu gostava de ficar lendo meus romances até escurecer e as letras embaralharem, pra depois saciarmos a interminável sede na fonte do Vovô ( penso que, enquanto escrevo isso , ela ainda está lá, jorrando aquela preciosidade, initerruptamente, talvez pra ninguém), correndo afogueados pra casa ao ouvirmos o gongo chinês chamando pro almoço que a cozinheira Dona Gertrudes já tinha aprontado pra nós e que cheirava tão gostoso a louro, cominho, noz moscada, quando devorávamos o repolho roxo à moda alemã, recém colhido na horta , feito com o Crema da Lêca que o caseiro alemão , seu Tremell, não conseguia chamar de creme de leite por nada nesse mundo, devorávamos aquela comida fresca, natural e saborosa, na saleta ao lado da sala de jantar, de pratarias inglesas e naturezas mortas do Di Cavalcanti, na nossa saleta contigua à cozinha, onde podíamos rir  e brincar, e sair apressadamente em caravana armada de facões que os meninos mais velhos levavam - Sebastião, Cláudio José, Augustozinho e Gustavo - pra abrir o mato,  e nós, os menores, você , eu e Otto Alexandre ( por onde andará, meu Deus...) , pra mais tarde voltarmos triunfantes com uma ossada, uma arcada de boi, que sonhávamos ser de algum dinossauro - pequeno, na verdade - mas que , às gargalhadas , Dindinho contestou e garantiu que devia ser do touro mais temido, o Stralsund, que tinha desaparecido misteriosamente há anos, o que já dava um certo status pra nossa descoberta e motivou a criação de um pequen museu de horrores na garagem, com aranhas bizarras, cobras jararacas e corais, besouros e pedras que recolhíamos durante as horas perambuladas, com a Taça do Gigante, nossa árvore adorada, a servir de guia, quando subíamos os morros após as chuvas de janeiro em busca dos cogumelos comestíveis escondidos nos troncos, que enriqueceriam as omeletes douradas na hora do jantar, chegávamos até o Belvedere pra admirar a vista da serra de Friburgo e a cidade de Teresópolis lá embaixo, descer mais um pouco e esperar o por do sol no Banco da Estrela, pra ver a estrela Vésper, que é a D'Alva, que é Vênus, e descer o morro na carreira, noite fechada, cantando, em busca do fogo da lareira da casa nova, que o Paulinho já havia aceso, essa casa nova,com cara de antiga, cheia de conforto, beleza e arte, e aos domingos era tão triste ir embora, despedir dos cachorros, o Alex - que era "meu" - e o Duke, que era "teu", as cestas de verduras e frutas, os cremes e os queijos pra levar, o último olhar do portão e o voo dos gansos rosados pela luz do poente...e a nossa vida na cidade parecia insípida mas, vista daqui, nem tanto, com todas as festinhas, a Hard Day's Night na vitrolinha e eu ensinando a você e ao Eugen a dançar o iê iê iê no meu quarto na Senador Vergueiro, 'preparando' vocês dois pra festa da Ana Elisa no Monte Líbano, Sonny and Cher no maior volume ' It's Gonna Rain Outsiiiiiiiiide, ôuôô', e These Boots Are Made For Walking, e caminhamos, você com uma cara gozada, de óculos quadrados e cabelos esticados na minha festa de quinze anos, black tie no Copa e, ainda "no tempo em que se festejava o dia dos meus anos", você de calça Saint Tropez, boca sino, cintão de couro, em outra foto onde estou super pop, de cabelo chanel e mini saia pink, um mês antes da  morte de seu Nassib, a casa ainda com todos os enfeites do Natal, as frutas , as nozes, as castanhas, o pinheiro, e as pessoas incrédulas, e as pessoas me dizendo que eu 'precisava ser forte', o velório no São João Batista lotado, a missa na Candelária, onde fiquei duas horas em pé, com a mamãe (tão linda, tão jovem), e as meninas, recebendo os pêsames e sendo 'forte', e as noites de terror que se seguiram, nas quais o rosto doce da tua mãe e a força serena do Augustozinho, muitas vezes chegando ainda com a camisa do pijama, para nos acompanhar, para nos serenar, para tentar trazer um pouco de paz à mente tão turbilhonada da minha mãe, mas vida que segue, e você com uma câmera foderosa na mão, se interessando por fotografia, tirando fotos minhas no apê da Av Atlântica , pra fazer um 'poster' que o Mauro, meu noivo na época, tinha encomendado e que você nunca entregou, mas que tenho algumas ampliações e as provas contato até hoje, lembro ainda da admiração e inveja que senti, quando você me mostrou um anúncio da Escola Superior de Propaganda , em São Paulo, que havia sido publicado no Pasquim, me dizendo que iria pra lá,pro Progresso, pra Metrópole, pro Sucesso, sozinho pra cidade enorme, e eu senti que alguma coisa da infância morria naquele instante, o meu companheiro quase irmão quase gêmeo, assumindo uma vida longe de mim, mas você veio pro meu casamento no Mosteiro de São Bento, o dia tão azul e quente de dezembro, eu eu fui visitar a tua mãe, ainda vestida de noiva,internada no Hospital São José, as enfermeiras, os médicos, os pacientes falando pelos corredores "-a noiva! a noiva!", eu segurando o véu comprido e correndo porque os convidados já me esperavam no almoço do Iate, e eu a beijei e notei que os olhos dela estavam maiores e ela me pareceu, pela primeira vez na vida, pequena e frágil e saí ventando, do modo que entrei, para uma vida nova, na cidade enorme, eu também iria pra São Paulo, na Metrópole eu me aventuraria, como você, meu quase irmão, quase gêmeo, fui pra mesma Faculdade que você e curtíamos o banzo do Rio numa padaria na esquina da Brigadeiro Luiz Antônio, tomando um expresso e comendo croissants nos dias gélidos da paulicéia, e nesse início ainda nos encontramos bastante no meu apêzinho da Brasílio Machado em Higienópolis, muita cana Tirich Mirr com limão e mel, muita manga rosa, muito Incredible String Band e Pink Floyd, e a TFP te acordando aos domingos de manhã, na pensão da Rua Pará, gritando palavras de ordem e empunhando estandartes em nome da tradição da família e da propriedade, ao que você respondia tomando uma mescalina e desenhando imagens delirantes e lindas, ainda lembro sua expressão , junto com a Bethinha, os dois com cara-de-reis-magos-no-presépio, me vendo amamentar o Rodrigo, depois a vida foi seguindo e só me lembro de te encontrar na esquina da Paulista com a Consolação, numa noite abafada de Dezembro, tínhamos assistido pela enésima vez Jules et Jim do Truffaut, sem saber que estávamos na mesma sessão, nos encontramos na rua, eu quase sem voz, afônica de cansaço, stress e tristeza, me joguei nos teus braços aos prantos e te contei que eu estava indo embora de São Paulo, que estava me separando, que estava indo pra casa da mamãe na rua Santa Clara, e chorava e pedia pra você ir me visitar, e você não dizia nada só me abraçava forte e fazia que sim com a cabeça, e eu entrei no meu fusquinha, o famigerado Boy da Mooca, meio na contramão da rua, meio na contramão da vida, e voltei pro Rio, dias depois, a Via Dutra ensolarada e linda, me lembrou as figurinhas do sabonete Eucalol que a gente colecionava na infância, eu e minha boca pintada, eu e meus delírios, eu alambique - a cana, a pinga, o bagaço que eu mesma destilo, bebo , me embriago do que eu invento e processo, uma pequena e rudimentar máquina a vapor que apita, chacoalha e sua, moto contínuo e perpétuo da própria essência, patética e inútil, mas hoje, tantos e tantos anos passados, pudemos nos encontrar para um almoço absolutamente delicioso no Bar Urca, quando nem falamos de nada disso, falamos das nossas vidas boas e realizadas, você em Sampa e eu no Rio, La Felicitá.
Ponto. 

Um comentário:

Jorge Puga de A. Lima disse...

Puta que pariu! To sem fôlego, mas com vontade de ler tudo de novo. Delícia, como sempre.