Carta à amiga (1986, São Paulo)

O que eu ia te dizer num telefonema internacional?
Que me ocorre que os homens estão perdidos dentro da ORDEM e
nós, perdidas dentro do CAOS, Julietas de todos os espíritos, pitonizas de
destinos ilógicos, carpideiras precoces do que as multidões só chorarão depois.
Choro agora o que só será pranteado mais além, quando meus olhos estarão
novamente úmidos, mas por outros novos e insondáveis motivos, não menos justos,
porém. A traição por antecipação, pois todos se sentem traídos quando não
choramos mais com eles, quando estamos por fim cansadas das lamúrias, e
ladainhas, e buscamos, com insana alma, o âmago de outros âmagos, para seguir
traindo tudo e todos, indiscriminadamente, por chorarmos o que ainda não é dor para os outros, pobres outros.
Agora as cortinas japonesas das janelas enlouquecem num
repentino vendaval que faz rodopiar as samambaias no clarão dos raios. Meu
corpo cheira a cigarro e a suor. Sou aquele avião pisca piscando, sim e não,
voando no caos dessa chuva de verão.
Não quero a Ordem que já existe e nem quero inventar outra
pra mim. Quero saber viver no Caos, salamandra no fogo que não se queima nunca,
avião na tempestade que não cai. Ser o Caos, estar no Caos, viver o Caos.
Minha casa vai, aos poucos, se transformando em vazio ex
lugar de tudo: flores que juntei distraída pelas ruas, sutiã que estava
apertando, batons sem tampa, cartas, cartões, conchas, anéis sem pedras,
rendas, fotos – ai, as fotografias...E eu, Pandora às avessas, meto tudo em
caixas.Dezesseis anos que guardam-se em algumas poucas caixas empilhadas no
canto de uma sala vazia. Como restou tão pouco do tanto que me investi? Amanhã
estas caixas estarão ao alcance de estranhas mãos que, desavisadamente, tornarão
a empilhá-las no caminhão.
Na vida dele entrei de sola e, agora, saio de mansinho. O
beijo deixei lá no espelho, kitsch comme Il faut, a um vero the end de amor.
Amanhã saio daqui correndo.
Quero a estrada livre, ampla, a Rio Santos que me levará de
volta pra c-a-s-a.
Carta ao amigo (1988, Rio de Janeiro)
Vou vivendo sem amanhãs, afogada nesta brisa estonteante
trazida dos confins em aromas de mares e matas, nos zumbidos das cigarras e sob
a atemporalidade constelada dos céus do sul. Finalmente mais Alberto Caeiro do
que Álvaro de Campos, se bem que insistindo em ouvir Tom Waits,
e as inocências do sonho parecem adquirir seu sabor mais agridoce daqui do alto
da minha sacada, ao me deparar com este imenso Eldorado Pantanoso em liquidação,
pra acabar, só até sábado.
Fim de milênio e talvez fosse mais sábio baixar a guarda e
deixar que o planeta nos redimisse num último e envolvente suspiro, nos
aquecesse e nos tragasse para suas profundezas de jasmins e maresias.
Só me resta o céu de cetim azul claro, onde Marte já me
aponta seu olho vermelho. Nada se mexe e eu também não: aguardamos o hálito cálido
de hortelã e clorofila de uma brisa alucinógena que costuma chegar no exato (?)
momento em que escurece totalmente, a embriagar incautos e loucos.
E a sua loucura, como vai?
Um comentário:
Lágrimas.
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