
Eu estava saindo de
uma hepatite. Havia ficado 3 semanas de repouso absoluto, com uma
dieta rigorosa, trancada no quarto, todos os amigos , primos, irmãs,
namorado , todos viajando e eu lá. Li praticamente um livro a cada 3
dias. Meu pai já tinha morrido fazia um ano, no natal de 67. Isso
era fevereiro de 69.
Um dia, não
aguentei. Coloquei na vitrola, que possuía duas caixas de som
poderosíssimas, um vinil com os enredos das escolas de samba e
sambei. Sozinha no quarto, de camisolinha, sambei, sambei, e eu
estava naquele momento em plena avenida, no meio da bateria,
completamente tomada pelo samba, quando me dei conta que a minha mãe
estava na porta do quarto gritando alguma coisa que eu não podia
ouvir e que, depois que abaixei o som, pude entender que era você
quer morrer??? o seu fígado está como se fosse uma renda de
gelatina – achei a imagem bonita – e pode se romper a qualquer
momento, menina!!!
Sim, ela sempre foi dramática.
Mas mamãe… Não
tem mas nem meio mas!!! É pra cama, a-g-o-r-a!
Passados uns dias
ela viu que eu não morri e que meu fígado provavelmente estava já
recuperado. O médico me deu alta. E ela resolveu me dar um carnaval.
Foi quando fomos pras arquibancadas da Presidente Vargas.
E aí… e aí, meus
amigos, era o Salgueiro entrando na avenida! Uma imensa imagem de
Iemanjá em branco e prata abria o desfile. A Escola de Samba
Acadêmicos do Salgueiro cantava “A Bahia de Todos os Deuses” do
carnavalesco Fernando Pamplona que criou o desfile junto com Arlindo
Rodrigues. Como eles sabiam que entrariam na avenida com dia claro e
sol alto, as fantasias eram todas em branco e prata, com detalhes em
vermelho, muito rendão, muita baiana, muito algodão imaculado,
muita rede prateada, muitos espelhinhos e o samba mais bonito de
todos *, levado pela ELZA SOARES!. A multidão cantava junto e já
gritava o clássico “é campeão”.
Sambei tanto que
tive uma vertigem ali na arquibancada. Fui desmontando e as pessoas
em volta logo me acudiram. Me lembro de um sorveteiro da Kibon com
sua indefectível caixa amarela e azul pendurada no ombro, que
imediatamente colocou na minha boca um picolé de limão, partiu ao
meio outro picolé de limão e esfregava ora nos meus pulsos ora nas
minhas têmporas, repetindo calma Lurdes, calma. Você vai ficar bem,
Lurdes...
A escola estava já
terminando o seu desfile.
Zum zum zum zum
zum zum, capoeira mata um, Bahia Bahia…
Foi
o ano em que a Escola conquistou seu quarto título de campeã
carioca.
Como
não virar Salgueiro imediatamente??
Do
meu pai eu herdei a paixão pelo rubronegro , quando passávamos
tardes quentes de domingo ao lado do radinho de pilha, ele fumando um
cigarro atrás do outro, mãos frias e pernas balançando e eu, de
olhos arregalados, tentando não roer as unhas e tentando entender o
emaranhado de informações que o locutor disparava. Os gols eram
sempre comemorados aos gritos, abraços e lágrimas, se fosse uma
final de campeonato.
Já
mamãe e eu criamos essa cumplicidade depois desse carnaval de 1969.
Um
ano depois eu me mudava casada pra São Paulo onde passei 16 anos.
Porém sempre acompanhava os desfiles do Salgueiro e de onde eu
estivesse, telefonava pra mamãe para comentarmos o desfile da
vermelho e branco do Andaraí.
No
carnaval de 2003 estávamos na casa da minha irmã em Búzios quando
a moça que trabalhava na casa da mamãe ligou pra nós dizendo que
não estava gostando do aspecto dela, que parecia fraca e inapetente.
Uma vez no Rio, fomos à casa dela e realmente seu aspecto era
preocupante. Havia emagrecido, sentia-se fraca e se podiam notar
manchas vermelhas pelos braços. Eu já havia decidido levá-la para
morar comigo assim que passasse o carnaval e eu pudesse fazer alguns
ajustes no apartamento que alugava no Jardim Botânico e para onde eu
havia me mudado recentemente.
Ela
dizia não sentir dor alguma mas que estava muito fraca e preocupada
com as manchas vermelhas.Resolvemos
que o melhor seria interná-la para exames.
Cheguei
mais cedo do que as irmãs e tias no dia da internação.
Ela
estava deitada de lado na cama. Puxei a cadeira e me sentei de frente
pra ela. Puxei conversa. Mãe,
você viu o Salgueiro? Os olhos dela brilharam, ela reuniu todas as
forças que podia, sentou na cama e fez o gesto que a comissão de
frente executou, segurando o lençol da cama como se fosse a capa
branca forrada de vermelho dos rapazes da comissão, e cantou num fio
de voz:
"Salgueiro...vermelho
/ Balança o coração da gente / Guerreiro, é de bambas um celeiro
/ Apenas uma escola diferente".
Ela jamais saiu do
hospital.
O Salgueiro não foi
campeão aquele ano.
*Bahia,
os meus olhos estão brilhando,
Meu coração palpitando,
De
tanta felicidade.
És
a rainha da beleza universal,
Minha querida Bahia,
Muito
antes do Império,
Foste a primeira capital.
Preto
Velho Benedito já dizia,
Felicidade também mora na Bahia,
Tua
história, tua glória,
Teu nome é tradição,
Bahia do
velho mercado,
Subida da Conceição.
És
tão rica em minerais,
Tens cacau, tens carnaúba,
Famoso
jacarandá,
Terra abençoada pêlos deuses,
E o petróleo a
jorrar.
Nega
baiana,
Tabuleiro de quindim,
Todo dia ela está,
Na
igreja do Bonfim, ( oi )
Na ladeira tem, tem capoeira,
Zum,
zum, zum,
Zum, zum, zum,
Capoeira mata um !
Zum,
zum, zum,
Zum, zum, zum,
Capoeira mata um !
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