sábado, 4 de março de 2017

"Salgueiro, vermelho / Balança o coração da gente “


               Na primeira vez que fui ver os desfiles de escolas de samba, elas ainda desfilavam na Presidente Vargas. Era um dia de muito sol e muito calor. Naquele tempo, as escolas não tinham horário para desfilar e tudo se estendia por muitas horas , atravessando as manhãs do dia seguinte. Havia arquibancadas dessas de montar de um lado e de outro da pista central da avenida e as escolas desfilavam vindo da Rio Branco em direção ao Mangue.
Eu estava saindo de uma hepatite. Havia ficado 3 semanas de repouso absoluto, com uma dieta rigorosa, trancada no quarto, todos os amigos , primos, irmãs, namorado , todos viajando e eu lá. Li praticamente um livro a cada 3 dias. Meu pai já tinha morrido fazia um ano, no natal de 67. Isso era fevereiro de 69.

               Um dia, não aguentei. Coloquei na vitrola, que possuía duas caixas de som poderosíssimas, um vinil com os enredos das escolas de samba e sambei. Sozinha no quarto, de camisolinha, sambei, sambei, e eu estava naquele momento em plena avenida, no meio da bateria, completamente tomada pelo samba, quando me dei conta que a minha mãe estava na porta do quarto gritando alguma coisa que eu não podia ouvir e que, depois que abaixei o som, pude entender que era você quer morrer??? o seu fígado está como se fosse uma renda de gelatina – achei a imagem bonita – e pode se romper a qualquer momento, menina!!! 

              Sim, ela sempre foi dramática.

Mas mamãe… Não tem mas nem meio mas!!! É pra cama, a-g-o-r-a!

             Passados uns dias ela viu que eu não morri e que meu fígado provavelmente estava já recuperado. O médico me deu alta. E ela resolveu me dar um carnaval. Foi quando fomos pras arquibancadas da Presidente Vargas.

             E aí… e aí, meus amigos, era o Salgueiro entrando na avenida! Uma imensa imagem de Iemanjá em branco e prata abria o desfile. A Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro cantava “A Bahia de Todos os Deuses” do carnavalesco Fernando Pamplona que criou o desfile junto com Arlindo Rodrigues. Como eles sabiam que entrariam na avenida com dia claro e sol alto, as fantasias eram todas em branco e prata, com detalhes em vermelho, muito rendão, muita baiana, muito algodão imaculado, muita rede prateada, muitos espelhinhos e o samba mais bonito de todos *, levado pela ELZA SOARES!. A multidão cantava junto e já gritava o clássico “é campeão”.

            Sambei tanto que tive uma vertigem ali na arquibancada. Fui desmontando e as pessoas em volta logo me acudiram. Me lembro de um sorveteiro da Kibon com sua indefectível caixa amarela e azul pendurada no ombro, que imediatamente colocou na minha boca um picolé de limão, partiu ao meio outro picolé de limão e esfregava ora nos meus pulsos ora nas minhas têmporas, repetindo calma Lurdes, calma. Você vai ficar bem, Lurdes...

            A escola estava já terminando o seu desfile.

Zum zum zum zum zum zum, capoeira mata um, Bahia Bahia…

           Foi o ano em que a Escola conquistou seu quarto título de campeã carioca.

           Como não virar Salgueiro imediatamente??

           Do meu pai eu herdei a paixão pelo rubronegro , quando passávamos tardes quentes de domingo ao lado do radinho de pilha, ele fumando um cigarro atrás do outro, mãos frias e pernas balançando e eu, de olhos arregalados, tentando não roer as unhas e tentando entender o emaranhado de informações que o locutor disparava. Os gols eram sempre comemorados aos gritos, abraços e lágrimas, se fosse uma final de campeonato.
Já mamãe e eu criamos essa cumplicidade depois desse carnaval de 1969.
Um ano depois eu me mudava casada pra São Paulo onde passei 16 anos. Porém sempre acompanhava os desfiles do Salgueiro e de onde eu estivesse, telefonava pra mamãe para comentarmos o desfile da vermelho e branco do Andaraí.

           No carnaval de 2003 estávamos na casa da minha irmã em Búzios quando a moça que trabalhava na casa da mamãe ligou pra nós dizendo que não estava gostando do aspecto dela, que parecia fraca e inapetente. Uma vez no Rio, fomos à casa dela e realmente seu aspecto era preocupante. Havia emagrecido, sentia-se fraca e se podiam notar manchas vermelhas pelos braços. Eu já havia decidido levá-la para morar comigo assim que passasse o carnaval e eu pudesse fazer alguns ajustes no apartamento que alugava no Jardim Botânico e para onde eu havia me mudado recentemente.
Ela dizia não sentir dor alguma mas que estava muito fraca e preocupada com as manchas vermelhas.Resolvemos que o melhor seria interná-la para exames.

          Cheguei mais cedo do que as irmãs e tias no dia da internação.
Ela estava deitada de lado na cama. Puxei a cadeira e me sentei de frente pra ela. Puxei conversa. Mãe, você viu o Salgueiro? Os olhos dela brilharam, ela reuniu todas as forças que podia, sentou na cama e fez o gesto que a comissão de frente executou, segurando o lençol da cama como se fosse a capa branca forrada de vermelho dos rapazes da comissão, e cantou num fio de voz: 
"Salgueiro...vermelho / Balança o coração da gente / Guerreiro, é de bambas um celeiro / Apenas uma escola diferente".

         Ela jamais saiu do hospital.
         O Salgueiro não foi campeão aquele ano.




*Bahia, os meus olhos estão brilhando,

Meu coração palpitando,
De tanta felicidade.

És a rainha da beleza universal,

Minha querida Bahia,
Muito antes do Império,
Foste a primeira capital.

Preto Velho Benedito já dizia,

Felicidade também mora na Bahia,
Tua história, tua glória,
Teu nome é tradição,
Bahia do velho mercado,
Subida da Conceição.

És tão rica em minerais,

Tens cacau, tens carnaúba,
Famoso jacarandá,
Terra abençoada pêlos deuses,
E o petróleo a jorrar.

Nega baiana,

Tabuleiro de quindim,
Todo dia ela está,
Na igreja do Bonfim, ( oi )
Na ladeira tem, tem capoeira,
Zum, zum, zum,
Zum, zum, zum,
Capoeira mata um !

Zum, zum, zum,

Zum, zum, zum,
Capoeira mata um !



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