VIDEOCLIP
RETRÔ
São
Paulo, setembro de 1986
Madrugada
gelada, sob o calor do corpo de Jens Winther, que faria aniversário no dia
vinte e nove de Outubro, cujos pais eram divorciados, que tinha duas irmãs e um
irmão, que era o trompetista de
um quinteto que levava seu nome e que também tocava na banda da Radio
Copenhagen, e que me sussurrou a angústia de ter uma vida reta, já traçada, um
‘prisioneiro do futuro’ que sentia inveja de um certo tipo de liberdade do povo
do Brasil, que podia mudar radicalmente sua vida , se decidisse ou precisasse.
Das dinamarquesas, tinha tido muito sexo e pouca ternura, não era casado mas
tinha dois filhos com duas mulheres e não gostava do jeito delas, duro e
competitivo. Falou do medo que aparecia para ele na forma de um escuro, gelado
e vazio castelo no alto de um penhasco. Era assim que algumas vezes ele se
sentia por dentro, como este castelo de silêncios absolutos, o Winther’s
Castle, como ele dizia. Perguntou dos meus silêncios. Eu não tinha nem medos
nem silêncios: só dor. Falou de Veneza para onde costumava ir visitar o pai que
trabalhava lá como designer. E do silêncio das abóbadas da Basílica de San
Marco. Dormimos muito abraçados.
Um homem que me
desconcertava completamente, tão diferente que era de todos que eu conhecera.
De uma franqueza tão absoluta que me fazia duvidar de quase tudo o que ele dizia.
Não
falávamos do fim que viria. Cada dia era um dia absolutamente especial e eu
nunca mais vivi, com tanta intensidade, o momento presente. Mesmo quando ríamos
de todas as coisas, de pura felicidade, de farra quase infantil, havia uma lembrança
de despedida que nos intensificava, ao mesmo tempo que nos tornava seres de
olhos frágeis, cães sem dono, sem fome, sem esperanças e, por isso mesmo, sem
medo. Dançamos a noite toda na festa da minha irmã como dois vagabundos, sob os
olhares esbugalhados da minha família. Jens gritava o mais alto que podia um I
love You esticado, como se uivasse. Não dava para ouvir a voz dele por
causa do som altíssimo da pista de dança da casa noturna onde a festa
acontecia. As luzes piscando e o Jens uivando sua declaração de amor repetida
obsessivamente, feito um lobo lindo e desesperado. Eu gritava de volta que não
acreditava e guinchava um iiiiiiiiiiiiiiiiiii, de believe, que
ele também não ouvia. O fato de o
idioma, através do qual nos comunicávamos, não ser o original de ambos, nos
fazia ser diretos, precisos e objetivos. Nos fazia, também, entender em
profundidade outros sinais e criar outros códigos, gestos quase
imperceptíveis, sentidos de intuição à
flor da pele.
Que
espécie de amor era esse, agora? Um amor que me acontecia sem eu pedir, que, me
quebrava todas as certezas e deixava minha alma como um espelho partido, o meu
coração esfarrapado e meu estômago feito um botão. Que despia a minha pele
junto com a roupa ao mais leve toque dos dedos dele, expondo todos os meus
nervos ao ar. Que me desvendava o temerário prazer dos desprotegidos, nos
cantos de uma escada de serviço do prédio em Pinheiros quando, quase nus, no
escuro vão entre um andar e outro, nos amamos na urgência do desejo plenamente
franco e sem nenhuma culpa, de casal primordial no dia do primeiro sexo. Não
tínhamos sede, não tínhamos sono nem fome. Só um desejo enorme que nos dava
pernas para continuar dançando e bocas para continuar beijando.
O
dia amanhecia branco. Tínhamos combinado na véspera que os últimos dias dele no
Brasil seriam passados somente comigo em alguma praia distante. O Baterista
sugeriu Boissucanga no litoral Norte, que então era quase deserta, principalmente
fora de temporada. Uma pequena sacola era o suficiente. Os que estão amando
necessitam apenas o essencial, roupas não pensadas, desencontradas, a escova de
dentes e um mapa.
Íamos
calados, o vento zunindo na fresta da janela do carro, nuvens brancas correndo
rápidas mudavam a luz da paisagem a todo momento, efeito super especial que
fazia o mar passar do cinza prata ao mais brilhante verde esmeralda em
segundos, para depois voltar ao cinza porque , agora, era a vez da mata à
esquerda iluminar-se em verde ouro. Às vezes ele apontava o que era
impressionante. Às vezes ficava me olhando e enrolando as pontas dos meus
cabelos nos dedos, I love your black hair...No gravador, Tom e João
Gilberto, ‘Wonderful, marvelous, you should care for me’.
A
Boracéia é uma praia enorme, muitos quilômetros de reta por onde voávamos. Stop
this car, woman, I need you now. Entramos por um atalho que era pura mata.
Ninguém. Uma pequena servidão deixava entrever o mar bravio e cinza. E o areal
deserto. Desliguei o carro . Só o vento e o mar. Entre nós, num crescendo, o
amor em desespero ia se instalando como podia, primeiro ali dentro e depois pelo chão coberto de folhas molhadas,
trêmulos de frio e de urgência. Ele falava comigo no seu rude e incompreensível
idioma, passando as mãos úmidas de terra e folhas pelos meus cabelos e eu
repetia meu amor, meu amor, e ele não sei o que dizia. À noitinha chegamos em
Boissucanga e nos instalamos num hotelzinho, exaustos, assustando o pessoal da
recepção com a nossa aparência. Achavam que tínhamos sofrido algum acidente.
Daí
em diante as coisas se passaram muito rapidamente e as lembranças desses quatro
dias me vêm todas juntas, como as nuvens de vagalumes que cintilavam no breu
por onde vagávamos, à noite, sem destino, nos arredores do vilarejo. De dia era
o mar. O desejo chegava a qualquer hora e, portanto, nos amávamos sempre que
ele se instalava, não importando o lugar. Já não nos divertíamos como antes.
Era mais como um desespero de fim de mundo. Não havia o que dizer, também.
Então, fazíamos longos discursos, nos nossos próprios idiomas, que, da minha
parte, eram declarações de amor rasgadas, confissões de coração aberto, queixas
e súplicas. Imagino que as palavras dele em dinamarquês tivessem teor
semelhante. Depois, eram os silêncios, como o espaço entre dois acordes, como
as abóbadas da Basílica de San Marco, como os imensos e sombrios corredores do
Winther’s Castle.
Em Ubatuba, um almoço régio: camarões empanados, mariscos,
frutas, saladas e vinho branco do Reno, e a mão dele me procurando, ávida, por
baixo da mesa. O fim da tarde tingiu-se de uma luz estranha amarelo enxôfre e
um temporal memorável desabou. Entramos
correndo em uma loja lotada de quinquilharias de toda espécie: conchas, cocares, apitos,
címbalos, berimbaus, pirâmides de pedra-sabão, redes, tapetes, aquele cheiro
forte de sisal, e ele escolhendo lembranças para levar. Achou um caminhãozinho
de pinho branco. Ficou com o olhar boiando, virando o brinquedo na mão,
devagar: __“It’s for my little son” , disse, subitamente invadido pela
Dinamarca, como se ele tivesse sido teletransportado
para aquele país e estivesse
falando comigo através de uma imagem holográfica, ele e sua jaqueta de couro
preto, sua medalhinha de ouro com um escorpião que no ferrão tinha um rubi, ele e seu andar gingado de marinheiro,
ele, o dos cílios louros, o moço escorpiano de Copenhagen, o dos olhos de águas
claras. Ficamos em um hotel com cara de anos cinquenta. Arrumamos os dois
colchões das camas de solteiro no chão. O abajur era uma cesta de vime em forma de cone apoiada sobre pés de ferro
preto que dava a tudo uma luz amarelada e triste. A chuvarada grossa, sem
ventos e sem trovões, fazia um som ensurdecedor de milhares de pedras, ao cair
sobre a varanda e o telhado. O último amor foi sem mais nenhuma urgência,
durante horas e em
silêncio. Suas mãos seguravam firme meus quadris impedindo
que meu corpo se descolasse do seu. Lentamente levou as duas mãos sobre o
próprio coração e, em seguida, apontou para a janela indicando a chuva e depois,
apontou para mim. Vestiu em mim, como se eu fosse um a criança, sua camiseta
rosada, estampada Manhathan no peito, as letras no formato de prédios
iluminados.
Saímos cedo, subindo a serra sob a neblina branca, a chuva
fina e o vento zunindo. Paramos numa lanchonete deserta, que surgiu feito um
espectro na beira do caminho, para um rápido café. Eu estava ocupada com os
pedidos quando ele me puxou pelo braço e me abraçou forte, enterrando meu rosto
no peito dele, e enterrando o rosto dele nos meus cabelos. Me deu de presente,
para sempre, a lembrança e a saudade do cheiro forte e bom do corpo dele.
Deixei-o na casa do
Baterista , na Barra Funda. Cheiro de cozido de galinha. Choro de crianças mal educadas
e remelentas. Som de um Grande Prêmio de Fórmula Um, na TV.
Não ia dar conta de ir ao Aeroporto com eles.
Liguei o carro.
Ele largou a mochila na soleira da porta e veio correndo.
Abri a janela do carro, beijei-o longamente nas marcas dos
lábios, nos dois semi círculos marcados pelo bocal do trompete. E saí avançando
os sinais, a neblina grudada nas retinas.
Dois meses depois, desmontei a casa. O moço dinamarquês
tinha me dito, um dia, embaixo da Sumaumeira do Jardim Botânico do Rio, que eu
não belongued to Saopaulo que eu era
aquelas árvores, que eu era do Rio de Janeiro, daquelas praias, daquele clima,
que eu swingged num outro ritmo. Em dois meses eu estava decidida a abandonar
tudo, casamento, trabalho, amigos e voltar pra casa, voltar pro Rio me arrastar até o mar, procurar o mar, porque
esse homem do norte gelado, como ele mesmo gostava de dizer, tinha vindo lá
daquelas lonjuras, feito um cometa que marca o céu e vaticina mudanças
irreversíveis. Precisou vir brilhar aqui no meu firmamento pra me fazer
entender os caminhos de me arrancar da minha inércia.
Arrumei as caixas. Dezesseis anos de São Paulo
empilhados no canto da sala em apenas doze caixas. O apartamento, aos poucos,
se transformou em vazio ex lugar de tudo,(o que fazer com batons sem tampa,
cartas, cartões, conchas, anéis sem pedra, rendas, fotos rasgadas e recoladas,
flores secas – a primeira rosa vermelha que ganhei do Marco na Fiorentina, e
que me enfeitou os cabelos quando, em seguida saímos pela Atlântica, de braços
dados, cantando “Avanti Populi, faciamo
greve...”).
Só doze caixas, que estarão ao alcance de mãos que, no
dia seguinte, indiferentemente, tornarão
a empilhá-las no caminhão da mudança. E
que assombrarão a sala quando não mais estiverem lá, feito fantasmas da minha
presença. Na tarde em que eu vim embora, a sala emudecia sob um sol escaldante.
Apenas o espanto do silêncio. Como se um coral de mil vozes entoasse o último
agudo e estancasse de repente.
Via
Dutra ampla e livre. Dia violentamente bonito, um acinte: vontade de dar
porrada nesse dia tão lindo, assim, me afrontando, gargalhando na minha cara
perplexa, se engalanando pra minha volta que, de triunfal, não tinha nada. Céu
azul, árvores ladeando a estrada feito as estampas cheirosas do sabonete
Eucalol que eu guardava na infância. Uma volta quase fuga , negando e renegando
e trinegando dezesseis anos, e a cabeça sem compreender como saí com tão
pouco do tanto que me investi. Saí de
São Paulo, eu e minha boca pintada, eu e os meus delírios, eu alambique - a
cana, a pinga e o bagaço - embriagada do que eu mesma crio, invento e processo.
Pequena máquina à vapor que chacoalha, apita e sua. Moto perpétuo da própria
essência, patética e inútil como aqueles bonecos de pilha que tocam vários
instrumentos, circulando sempre. A estrada bonita tragava os meses, dragava os
anos, a vida toda numa golada só; numa golada de óleo de rícino.
Me arrastar até o mar.
Procurar o mar.
Rio
de Janeiro , 1998
Agá
tê tê pê barra barra iarrú ponto com- clic –iarrú xópin barra miúsic –clic- jazz-clic-artistdirect-clic-
Jens Winther – search –clic...(esssspeeeeeeeraaaaa)...as capas dos CDs surgiram lentamente na tela. O primeiro, reeditado em
mil novecentos e noventa e quatro, de um vinil do ano de oitenta e oito, trazia
como título da primeira música, “Ubatuba”. Jens, na capa, aparece em foto PB , camisa preta, com
a medalha do escorpião.
(Meu deus pagão dourado, cadê tu, bruto?! Foi tudo
uma gravação, um vídeoclip retrô? Fruto da imaginação, holografia romântica,
viagem alucinógena, visão, visagem, nunca existiu?)
Comprei na hora. Chegou vinte dias depois. Ouço
“Ubatuba” e a chuva ainda inunda a memória.
A gente se reencontra na rede...
Rio de Janeiro,2008
Finalmente ele tinha um site. Escrevi do you remember me e anexei mais um
tanto de fotos escaneadas que ele nunca tinha visto, de nós dois há vinte e
dois anos. Uma no piano bar onde ele tocou Wave pra mim, depois de um
cinematográfico beijo na boca aplaudido pela platéia; outra na festa da minha
irmã com caras de bois ladrões, e mais uma, numa barraquinha de pescador...
onde mesmo?
A resposta veio rápida e torrencial. Lembrava, claro, e
contava a vida desde então.
Ele casou e teve mais três filhos além daqueles dois.
(Eu descasei duas vezes).
Ele morou em Nova York e tocou com o Miles Davis.
(Eu vim morar no Rio, montei um ateliê no Jardim
Botânico e passei a pintar).
Ele usou todo o tipo de drogas, das mais leves às mais
pesadas.
(Eu fazia Yoga, aprendi a ler o Tarô, fiz análise ,
tomava chás e fazia longas caminhadas à beira mar).
Ele estava se divorciando e tentando sair com dignidade do
casamento.
(Eu tinha terminado com o Maurício.)
E terminava dizendo que queria me ver. Que ia dar um
jeito , you can believe.
E veio. Arrumou umas apresentações em São Paulo e no Rio.
Chamei por ele no escuro do piano bar, depois da
apresentação. Lá estávamos nós, de novo, coincidentemente na mesma data de
agosto, só que vinte e dois anos depois, sob o mesmo céu paulistano. Abraços
emocionados e beijos afetuosos. Procuro a paixão dentro de mim e não encontro.
O que está lá, eu ainda não sei. Procuro ele dentro dele, e encontro
apenas vestígios do moço que conheci. Ele fala rápido e sem parar durante
horas. Funny é FÔNI. Magic é MÁZIC. Boat é PÔT. Sustento
um olhar apaixonado. Ele diz que é so
nice to be here with you... you are so easygoing...I'm so glad that I'm here
with you… Estamos
nos esforçando para fazer jus à nossa história e a este encontro, vinte anos
depois, coincidindo na mesma data de 29 de Agosto. Isso , afinal, deveria
significar algo, a mesma conjunção astrológica, sei lá...
No Rio, Jantamos num bistrôzinho em Copacabana e, quando
enfim as relembranças se esgotaram , o silêncio foi difícil.
Saímos do bistrô já era madrugada. Fomos andar na praia,
na areia, perto do mar. Muito diferente de outra caminhada à beira mar, vinte
anos antes, no Leblon, quando nos aproximamos de um grupo que acendia velas e
entoava uns cantos pra Iemanjá. Desabotoando a minha blusa branca e, beijando meu
colo, disse que os deuses, quando querem castigar, atendem aos nossos pedidos.
Agora, o mar estava batendo forte e havia luzes demais.
Ao nos deitarmos, já na minha cama, senti o cheiro dele e
tive vontade de não ser essa Eu de agora. Tentei , em vão, ser aquela
outra de um dia impresso na memória, quando
o sol, filtrado pelas árvores da Mata Atlântica, iluminava o ouro dos cabelos
dele e o mel dos olhos da mulher que eu era.
No café da manhã, me contou o lado B.
Heroína pelo nariz durante anos. Falou dos 5 filhos.O
caçula era um tecladista de talento e eles dois estavam desenvolvendo um
trabalho juntos. Os olhos naufragam quando diz que vai vender a linda casa no
litoral dinamarquês pra ir morar na Alemanha. Os contatos de trabalho na
Alemanha são bons e promissores. Falou da ex mulher. Que é insegura e
possessiva. Que foi mais fundo nas drogas que ele. E que ele está
procurando uma maneira digna, amorosa e honrada de sair desse relacionamento de
quase vinte anos.
Eu escuto. Eu olho. Percebi que eu gosto mais da nossa
história do que propriamente dele. Que roncou a noite inteira feito um viking
depois do festim. As histórias serão sempre minhas, enquanto eu quiser. Elas,
as histórias, são afinal o que nos resta.
Passei o dia todo resolvendo se ia ao show dele lá no
Centro Cultural Carioca.
(Talvez o último capítulo deste conto devesse ser este
que acabei de escrever.
Depois, o The End e, entrando como trilha sonora, ‘Once
Upon a Summertime’,no trompete de Jens Winther . A cena fecharia com o nosso
beijo na aléia central do Jardim Botânico, sob o céu azul e o vento fresco da
primavera chegando, balançando as folhas das palmeiras imperiais. A ficção é
mais correta que a realidade. E sempre faz sentido.)
-"You look specially beautiful tonight…"
Se fosse só por este elogio já teria valido a pena não
ter amarelado e, sim, ter ido ao show no Centro Cultural Carioca.
Demorei decidindo vou não vou, e cheguei atrasada, já
ouvindo o trompete ecoando na praça vazia e iluminada, em frente ao Real
Gabinete Português de Leitura. Não tinha muita gente. Segunda feira, ainda por
cima de inverno, friozinho, os cariocas não se atrevem. Perderam. Aconteceu a
tal da mágica entre os músicos e a Jam foi espetacular. Deu liga. Foi
esplêndido.
A produtora sentou a meu lado: "Você é a
namorada do Jens, não é?" -"Praticamente."
Agora ela me pedia que desse dipirona pra ele, que estava
com um febrão e que o acompanhasse no hotel até que melhorasse. Dia seguinte
tinham que estar no Santos Dumont muito cedo porque, à noite, iriam tocar em
Bêagá no festival de jazz de lá.
Mandei colocarem mais três garrafas d'água no palco e
guardei o remédio pra depois.
Fomos pro hotel Ibis a pé, eu , ele, os músicos e a
produtora. Tudo parecia mesmo um filme: as ruas desertas do centro da cidade,
com os prédios iluminados em amarelo, cenografavam a curta caminhada.
Ele estava com muita febre de novo. Dei o remédio. Nos
deitamos abraçados, mesmo vestidos.
Me falou que tinha gostado demais de ter estado na minha
casa. E agradeceu por eu o ter acolhido na minha intimidade. Aquele jeito de polite guy novamente .
Cochilo. Ele começou a suar.
Já eram quase três horas. Decidi que eu precisava ir
embora e dormir direito. Não ia aguentar outra noite de roncos furiosos...
Chamei um táxi, e ele fez questão de me levar no elevador.
O último abraço e beijos. Me olhou longamente, talvez
procurando Eu em mim.
A porta de aço fechou.
O taxi
me esperava na rua deserta, em frente à Catedral Presbiteriana.
(O drone sobe e, do alto, filma o carrinho amarelo
desaparecendo em direção aos Arcos da Lapa. Música
incidental: Round Midnight. No trompete, Jens Winther.)
Epílogo
Primeiro foi o susto.
Eu estava na internet na madrugada de uma sexta feira
abafada de março, 2011. Desde aquela noite no Centro Cultural Carioca, trocamos
alguns emails e nada mais. Nem sabia que ele estava morando na Suíça.
A morte formata definitivamente as histórias e suas
lembranças. Cria lógicas. E, de um modo ou de outro, tudo se explica, tudo são
respostas, tudo se transforma em versões. Tudo se transforma em ficção e, por fim,
faz sentido.
“Parece que o Jens foi encontrado morto na casa dele, em
Genève.”
Foi o recado que alguém postou na minha página do
youtube, como comentário de um filme que eu fiz dele tocando Round Midnight no
Centro Cultural Vergueiro, em
São Paulo , enquanto os músicos desmontavam a banda. Ele naquele
palco do subsolo, vestido de preto, a cabeleira brancoprata iluminada pelo sol
do meio dia que atravessava a clarabóia.
Hades no Hades.
Recorri ao Google e estava lá a notícia.
Ele nunca mais estaria em algum lugar do mundo, esse
mundo que acabou ficando tão pequeno depois de emails, skypes, celulares.
Chegamos a marcar um encontro em Berlim , adiado, desmarcado, adiado...
O dia amanheceu e eu saí.
Fui andar e chorar na praia, escoltada pelos Dois
Irmãos, abraçada pelo vento Leste, de peito aberto para o Arpoador. Quando
alguém assim morre, a pessoa que a gente era para aquela pessoa, também morre.
Um dia, eu escrevi este conto.
Um dia, ele compôs duas músicas. Ubatuba e Tomorrow
Dreams.
É o que realmente fica.
A última foto de Jens Winther
*fotos da internet