terça-feira, 5 de novembro de 2019

Primavera nas Vinhas


Nosso desejo recua, recua, recua, sobe as colinas floridas da Síria e se instala na pequena aldeia de casas pétreas dos nossos ancestrais.
Nosso desejo sorve, aspira, traga, engole todos os desejos que há setecentos anos se instalaram ali, desde que os primeiros da nossa estirpe iniciaram suas bodas entre si.
Nosso desejo incorpora todos os desejos entre iguais, todas as uniões, todos os incestos, todas as seduções, todos os desesperos, todos os danos, todos os abandonos, todas as solidões, os delírios, os êxtases, as febres, as culpas e os medos. E também todas as bocas que gritaram suas paixões, ou as que as calaram, ou ainda as bocas que se colaram ocultas à sombra das videiras.
Nossos corpos são todos os corpos no exato momento dos defloramentos e das manchas rubras nos lençóis de linho, no exato momento do descontrolado tremor de todos os prazeres, e abrigam todas as barrigas prenhes e todo o sêmen das sempre novas e infinitas gerações que se amaram entre si, e se sucederam, e se sucedem e se sucederão.
E este imenso e ancestral desejo desce as colinas floridas da Síria de volta, como uma ressaca gigantesca que arrasta consigo as flores, os templos, as cidadelas, os ícones nas paredes nuas, os tapetes, os brocados, as bandejas de ouro, as tamareiras, e se multiplica como os ramos das videiras que nossos avós cultivavam quando moços .
E esta videira agigantada, revigorada, explode em uvas de mel, alastra-se feito uma renda, atravessa os oceanos e, nos surpreendendo, nos enlaça, tornando-nos cada vez mais iguais e cada vez mais desejosos do que em nós é tão igual: nossas mãos largas, nossos cabelos anelados, nossos olhos enormes, nosso desejo que, enfim, é o mesmo desejo, marcado no bater de todas as botas dos homens nas intermináveis fileiras do dâbk , o mesmo desejo que rodopia solto nos lenços nas mãos dos anciãos.
E nos entrelaçaremos , destino de videiras, colados dos ventres às bocas, gêmea tessitura de pele que porejará o mesmo suor de mel das uvas com as quais se fartavam nossos avós, bisavós, trisavós e assim para trás, até os que fizeram a primeira colheita e depois se amaram merecidamente sob o sol.
E nos amaremos merecidamente sob o sol.

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