terça-feira, 5 de novembro de 2019

Zuleika Hanum , ou Sobre Refugiados





Um dia apareceu um desconhecido tocando a campainha de casa. 
Eu devia ter uns 15 ou 16 anos e estava ao lado da minha mãe quando ela abriu a porta.
Era um homem diferente.
Usava um terno pesado preto, gravata também escura sobre a camisa branca e um chapéu. E possuía uma barba espessa. Talvez fosse jovem. Era alto. Ali, na quase penumbra do hall do elevador, causava uma estranheza incômoda.
Mas tinha um olhar doce. Um jeito de gente mansa. Um quase pedir desculpas por existir.
Com forte sotaque, explicou que era  parente de uma vizinha israelita que morava dois andares abaixo do nosso apartamento. Perguntava à minha mãe se ela podia ajudá-lo comprando um disco onde ele próprio cantava "uma bonita canção". Falou de dificuldades de estrangeiro recém chegado, que tinha abandonado a Pátria, que mal falava o novo idioma. Falou de recomeço de vida.
Minha mãe hesitava com o disco na mão, olhando ora pro homem ora pro disco. A importância que ele pedia era irrisória. Mamãe e eu nos olhamos e ela foi buscar a carteira com o dinheiro.
O estrangeiro se derreteu em agradecimento. Foi embora e nós nunca mais o vimos.

Ainda hoje sei cantar partes daquela música. O engraçado é que ela me vem à memória com letra em português mas com um sotaque carregado do homem que a interpretava, naquele disco de baquelite preto.

                           "Zuleeeeeeeeika Hanum...
                            D' Úriente mais bunita és tuum
                            Zuleeeeeeeika Hanum
                            Seus olhos son azuis comu céúú
                             (.....)
                            Con Zuleika ia me casar
                            Hoje vivo eu com sodádi
                            Longe do Zuleika na cidadiii"

Acontece que eu não conseguia ouvir o disco sem chorar. Toda a história daquele homem refugiado e ainda a melodia melancólica, me tocavam tão profundamente e eu chorava.

Minha mãe já fazia pra me provocar, eu que tinha fama de não chorar por nada.

Procurando na internet, achei uma versão pop publicada em 2013, com uns rappers fazendo mix.

Só entendi uma palavra: azerbeidjani.

Fiz um recorte para ouvir somente a parte mais antiga .







Primavera nas Vinhas


Nosso desejo recua, recua, recua, sobe as colinas floridas da Síria e se instala na pequena aldeia de casas pétreas dos nossos ancestrais.
Nosso desejo sorve, aspira, traga, engole todos os desejos que há setecentos anos se instalaram ali, desde que os primeiros da nossa estirpe iniciaram suas bodas entre si.
Nosso desejo incorpora todos os desejos entre iguais, todas as uniões, todos os incestos, todas as seduções, todos os desesperos, todos os danos, todos os abandonos, todas as solidões, os delírios, os êxtases, as febres, as culpas e os medos. E também todas as bocas que gritaram suas paixões, ou as que as calaram, ou ainda as bocas que se colaram ocultas à sombra das videiras.
Nossos corpos são todos os corpos no exato momento dos defloramentos e das manchas rubras nos lençóis de linho, no exato momento do descontrolado tremor de todos os prazeres, e abrigam todas as barrigas prenhes e todo o sêmen das sempre novas e infinitas gerações que se amaram entre si, e se sucederam, e se sucedem e se sucederão.
E este imenso e ancestral desejo desce as colinas floridas da Síria de volta, como uma ressaca gigantesca que arrasta consigo as flores, os templos, as cidadelas, os ícones nas paredes nuas, os tapetes, os brocados, as bandejas de ouro, as tamareiras, e se multiplica como os ramos das videiras que nossos avós cultivavam quando moços .
E esta videira agigantada, revigorada, explode em uvas de mel, alastra-se feito uma renda, atravessa os oceanos e, nos surpreendendo, nos enlaça, tornando-nos cada vez mais iguais e cada vez mais desejosos do que em nós é tão igual: nossas mãos largas, nossos cabelos anelados, nossos olhos enormes, nosso desejo que, enfim, é o mesmo desejo, marcado no bater de todas as botas dos homens nas intermináveis fileiras do dâbk , o mesmo desejo que rodopia solto nos lenços nas mãos dos anciãos.
E nos entrelaçaremos , destino de videiras, colados dos ventres às bocas, gêmea tessitura de pele que porejará o mesmo suor de mel das uvas com as quais se fartavam nossos avós, bisavós, trisavós e assim para trás, até os que fizeram a primeira colheita e depois se amaram merecidamente sob o sol.
E nos amaremos merecidamente sob o sol.