segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

 UM CONTO DE NATAL- Sunshine





Era um fim de tarde tranquilo e a praia de Copacabana estava praticamente vazia. Dia 25 de dezembro de 1989 e, com horário de verão, às sete da noite ainda era dia claro. Eu estava absorta lendo um livro do Amyr Klink que meu filho tinha me dado de presente sentada na cadeira de praia próxima ao mar .Só ouvia o barulho das ondas, mais nada. Levantei os olhos por uns instantes e vi um menino de uns 7 anos, só de sunga, com uma toalha no ombro, andando sozinho e chorando.
Olhei em volta.
Ninguém.
Ele parecia falar alguma coisa e estava desorientado.
Levantei e fui até ele.
-Você está perdido? Cadê sua mãe?
Notei que ele tinha uma cicatriz que descia vertical bem no meio do peito e ia até quase o umbigo.
Mas ele me respondeu em inglês que não sabia onde estava a mãe, que ela tinha ido nadar e que tinha sumido. Olhei pro mar. Só as ondas.
-What´s your name, Darling?
-Luke.
-My name is Chris.
Eu disse a ele que tivesse calma, que eu falava a língua dele e que nós íamos achar a mãe juntos. Peguei minhas coisas e nos encaminhamos de mãos dadas até o posto Salva Vidas. Lá o salva vidas não havia visto nada e ninguém tinha ido procurar o menino. Se eu queria deixá-lo ali. Não , obrigada.
Ele não sabia dizer onde a mãe o tinha deixado e aparentemente já andava a esmo havia um bom tempo.
Perguntei em que hotel ele estava hospedado.
-Sunshine.
Nunca tinha ouvido falar.
-Are you sure? Sunshine?
E ele respondia enfaticamente que sim. Ele dizia que era perto, não na praia, numa rua que ia dar na praia.
Por ali só havia o Hotel Debret cuja entrada era pela lateral.
-Debret? Perguntei.
Ele não entendeu.
Escrevi na areia D-E-B-R-E-T h-o-t-e-l?
-No!!! Sunshine!!
E recomeçou a chorar.
Aí quem quase estava chorando era eu...
Quando me ocorreu olhar a toalha que ele carregava e lá estava o nome do Hotel, em azul :
Debret.
-Look!!! That´s the name of your hotel!!! I know where it is!!!
Já na esquina do Hotel os seguranças se alvoroçaram e correram pra nós.Um deles disse que a mãe já estava acionando a Interpol.
O rostinho dele se iluminou e apontou uma placa sobre um salão de cabeleireiro vizinho à entrada do Hotel Debret:
SUNSHINE coiffeur
No lobby a mãe me abraçou soluçando e agradecendo e me beijando e soluçando, e eu só consegui dizer:
- Merry Christmas. Here is your Sunshine.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

TANGO NA SUIÇA

 




TANGO NA SUIÇA
Eu tinha 11 anos e estava na Suíça viajando de férias com meus padrinhos. Minha mãe depois contou que meu pai mal dormia de noite, pensando se estava tudo bem comigo, se meus padrinhos estavam cuidando bem de mim, se eu não estaria aborrecida e com vontade de voltar pra casa...
Eram obviamente tempos sem internet e celulares. E os cartões postais demoravam uma vida pra chegar.
Como ele era dono de uma agência de turismo, a Kamel Turismo, ele deu um jeito de comprar pra ele e pra mamãe passagens pra Zurich pra nos encontrar lá. Precisava ver com os próprios olhos se a filhinha dele estava bem.
Lembro deles 4 rindo às gargalhadas no restaurante do hotel porque meu padrinho havia me registrado como filha; só que ele era alemão ariano , louríssimo de olhos azuis, e eu aquela turquinha de cabelos muito pretos e sobrancelha cerrada. Tudo bem, até a chegada dos meus pais: a “filha” do alemão era a cara do amigo da família, que acabara de chegar!
Na noite seguinte fomos jantar num restaurante que tinha música ao vivo, um conjunto musical de piano, violino, contrabaixo. Tocavam jazz e ‘música de salão’. Até que atacaram de “Cumparsita”. Meu pai, criado em Jaguarão, na fronteira do Uruguai, dançava um tango como ninguém.
Solenemente ele se levantou, deu a volta na mesa e elegantemente me tirou pra dançar. Fomos pro meio do salão onde havia muitos casais de adultos dançando. Não era a primeira vez que tangueávamos , mas era a primeira vez em público. As outras vezes eram em casa, aos domingos, de farra.
Naquela noite , ele ia falando baixinho pra mim o que fazer: cruzar os pés na frente, rodar na frente dele, ir dando os passos pra trás, parar, olhar pro lado e andar... quando me dei conta, TODOS os outros casais pararam de dançar e abriram uma roda onde nós nos exibimos no meio. Me lembro até da roupa que eu usava: uma saia curta acima dos joelhos ( era o tempo das minissaias ) de pregas e um spencer do mesmo tecido, que era verde claro salpicado de branco e azul marinho. Meias ¾ e sapatinho preto. Lembro que eu achava que os músicos não terminavam nunca de tocar e eu já estava suando! Quando eles deram o acorde final eu caí pra trás nos braços do papai e ele me puxou de volta, no perfeito gran finale tangueiro!
Fomos aplaudidos por todo o restaurante!

domingo, 7 de agosto de 2022

O Dia em que Caetano Salvou Minha Vida




 Era o ano de 1991.Cheguei em casa  no desespero. Carregada de livros e pastas, mais um dia de trabalho como professora no centro da cidade do Rio de Janeiro, voltando pra casa de ônibus lotado, um inferno, salário ínfimo, contas acumulando, pouca comida na geladeira, solidão num apêzinho em Jacarepaguá,dois casamentos e uns tantos relacionamentos encerrados tristemente, longe de tudo e de todos,  Longe principalmente do filho, que por diversas circunstâncias, inclusive financeiras, agora morava com o pai , nas lonjuras do Leme. Pra ele era muito melhor e pra mim era o verdadeiro significado da derrota. O preço da independência era alto e vinha me cobrar de relho na mão, todo dia.

Eu só tinha um pensamento naquela cabeça em rodopios: morrer. 

Tudo tinha dado errado na minha vida, assim eu achava firmemente. Tudo doía em mim e eu tinha, naquele momento, um nervo exposto na alma.

Morrer.

Chorando,  eu pensava em como.

Gás.

Pular da janela.

Cortar os pulsos.

O vento entrando pela porta aberta da sacada, sacudiu um jornal que eu tinha deixado jogado no chão da sala logo cedo, ao sair pra trabalhar. Uma página inteira  anunciava: Próximo Domingo, 21 de abril , apresentação de Caetano Veloso em homenagem ao Dia da Terra, na enseada de Botafogo.

Enxuguei as lágrimas: antes de Domingo eu não podia morrer.

No céu, uma luazinha minguante boiava sobre o Pão de Açúcar. Caetano sozinho no palco, acompanhado apenas do violão, um banquinho e um microfone, pediu que todos sentássemos nas areias. E começou cantando Valsa de uma Cidade .

Chorando de mansinho eu compreendi profundamente uma frase que eu já dizia como bordão, há muito tempo: Só a Arte Salva.

Até hoje, ouvindo a música Paratodos do Chico eu lembro daquela noite em que não virei" passarinho avoando de edifícios" porque fui de Caetano na veia. Pra sempre.

#caetano80anos 

https://www.youtube.com/watch?v=OXVc0zKwdds


domingo, 20 de setembro de 2020

HEY JUDE - A FONTE DA SAUDADE

 



12/10/1968

Não me lembro a primeira vez que ouvi Hey Jude. Mas certamente, naquele outubro de 1968, eu já tinha ouvido o mais recente lançamento dos Beatles : eu era assídua ouvinte da Rádio Mundial, rádio de vanguarda na época,  e que tinha um programa só dedicado aos Beatles às 5:30 da tarde. Inclusive Hey Jude já havia sido lançada num compacto simples,  capa de papel amarelinho, com Revolution no lado B. Comprei, é claro.
Obviamente Hey Jude tocaria algumas vezes naquela noite na Fonte da Saudade, no aniversário de uma amiga que ia ser comemorado  num salão de festas dentro de um terreno ajardinado. Hoje essa propriedade não existe mais. No local há um grande prédio de tijolinhos no centro do terreno que ainda mantem um belo jardim em volta.  Moro perto: é meu caminho de ida e volta para Lagoa Rodrigo de Freitas e, toda vez que passo ali, me lembro daquela noite, da música, da festa, da casa, e do Moço Escorpiano que mudou minha vida.


Era próximo da meia noite.
Na verdade eu tinha ido à festa na esperança de encontrar um ex namorado. Havíamos terminado o namoro em julho e ele sempre deixava no ar a possibilidade de voltarmos. Mas já era quase meia noite e ele não chegava. Comentei com uma amiga que eu não o esperaria mais. O prazo que eu dava era aquele, meia noite do dia 12 de outubro de 1968. Um prazo pra sempre. Nunca mais. O meu ponto de não retorno.
Foi nesse momento que ergui os olhos e era como se tivesse acabado de entrar na festa. Os ouvidos se concentraram na música que começava a tocar: Hey Jude. Meus olhos encontraram dois olhos negros lá do outro lado do salão. Era um moço bonito. Vi que o moço bonito, muito bonito, esquio, com um ar decidido, atravessava a sala firme na minha direção. Estendeu a mão e me tirou pra dançar. Dançamos Hey Jude inteira, conversando, e mais outra e outra... Depois tocou um samba da Mangueira e fui sambar com um amigo . Me trouxeram uma vassoura que serviu de bandeira e meu amigo, com uma tampa de caixa de sapato para se abanar, fazia o meu mestre sala.
O Moço dos Olhos Negros me pediu o telefone.
O ex namorado me ligou no dia seguinte para explicar que o carro dele, um DKW, tinha enguiçado não sei onde.
Mas Hey Jude ainda tocava no meu coração...
 
21/04/1990
Eu morava sozinha em Jacarepaguá. Já havia me divorciado do Moço Escorpiano dos Olhos Negros e também do Professor Lukácsiano.
Paul McCartney havia se apresentado na véspera no Maracanã debaixo de uma grossa chuva. Mas o dia agora estava lindo, límpido e fresco. Eu estava em casa e ouvia a Rádio Cidade. O locutor então começou a falar empolgadíssimo sobre o show do Macca na véspera, que tinha sido histórico, que ninguém podia perder, que ainda havia ingressos, que o final era apoteótico com Hey Jude...
Vesti minha ‘roupa de multidões’ – calça jeans, camiseta, tênis, documentos em um bolso, dinheiro trocado em outro – roupa de comícios, manifestações e shows, até hoje.
Ainda tentei achar uma companhia mas ninguém queria se aventurar.  Saí sozinha, peguei o 240 (que a gente chamava Dois Quarenta) na Pau Ferro e fui pro Maracanã. Cheguei às 3 da tarde e havia duas filas gigantescas: uma pra comprar o ingresso e outra pra entrar no estádio. Fiquei mais de uma hora pra comprar e, depois, fui andando, andando, andando, procurando o fim da fila pra entrar. Na metade do caminho alguém me chamou Criiiissss!!!! Estamos aqui!!! Era uma aluna da ETEC que, me vendo sozinha, fez como se tivéssemos marcado de nos encontrar, porque, furar fila naquele momento, dava tiro porrada e bomba. Entrei na fila com eles ali. Ainda eram umas 5 da tarde. Os portões só abririam às 7 da noite. Todos conversavam animados e, de vez em quando, um grupo começava a cantar uma das músicas dos Beatles que se espalhava pela fila em coral animado. Fiquei com um cara chamado Clemente que estava por ali. Era médico. Parecíamos dois adolescentes beatlemaníacos, nós que já estávamos com 39. Beijos bons, mãos dadas e canções. Não tínhamos canetas pra anotar telefones. Eu disse o meu e ele achou que ia guardar. E eu o perdi pra sempre na hora que abriram os portões. Um estouro de boiada e 184 mil pessoas se espremiam pra entrar pelas catracas. Fui erguida por não sei quem, amparada do outro lado por outras mãos desconhecidas, ainda procurei Clemente, chamei pelo nome dele, mas fui sendo levada pela multidão pra dentro do estádio. O gramado já estava repleto. Resolvi ficar bem atrás, com a rota de saída a meu alcance. Sabia que o show terminaria com Hey Jude e, assim que começassem os primeiros acordes, eu sairia do estádio. Precisava pegar o Dois Quarenta de volta pra Jacarepaguá.
Cantei, pulei, dancei, chorei e ri sob um céu lindamente estrelado.
Eu sabia que o Homem Escorpiano de Olhos Negros estava em algum lugar, no meio daquela multidão, com o nosso filho que, então, tinha 16 anos. Talvez também se lembrasse de mim. Nunca soube.
Aos primeiros acordes de Hey Jude fui saindo sozinha, no imenso estádio que tantas vezes frequentei em jogos do Flamengo com meu Noivo Escorpiano de Olhos Negros. Saí sozinha cantando junto com o imenso coral que se formara dentro do estádio. E chorando, claro.
Eu tinha visto o Paul.
Um Beatle tinha afinal vindo ao Brasil, coisa com a qual eu sonhara a adolescência inteira. Já não havia mais Lennon mas tinha o Paul que fazia um showzaço e que ‘sobrara pra contar a história’.
Cheguei no ponto do ônibus em frente à UERJ na hora do Na...nananananaaa...
Dancei sozinha, chorei e cantei tão alto quanto pude. O Maraca vibrava na noite à minha frente. Daquela imensa boca voltada pro céu estreado saía o coral mais bonito e apaixonado que eu já ouvira. E eu cantava sozinha mas junto.
 O ônibus apareceu iluminado e quase vazio. O Dois Quarenta. Foi uma Long and Winding Road até minha casa, que percorri chorando de mansinho.
 
 
16/ 09/2006
A caminho de Toledo
Estava na Espanha com um grupo de alunos-amigos já havia 8 dias. Levantamos cedinho e, como sempre naquela viagem, o dia estava lindo. Pegamos o ônibus que nos levaria de Granada para Toledo. O guia explicou que a Sierra Morena é que divide as regiões de Andalucia e La Mancha, rumo ao norte. Já fui me despedindo dessa terra mágica prometendo voltar em breve! Passamos por plantações de melão e de oliveira e pelos moinhos : La Mancha é a terra dos moinhos e já avistávamos alguns ao longe.
Nessa hora eu estava sozinha na poltrona, vendo a Espanha passando lá fora, as oliveiras, os moinhos, o meu sonho sendo realizado. No som do ônibus, começou a tocar inesperadamente Hey Jude.  Senti uma emoção tão grande que comecei a chorar. As lembranças e sentimentos se misturavam no meu coração: estava conseguindo realizar um sonho, havia trabalhado muito no Circuito das Artes produzindo aquarelas e gravuras para isso, e , com o dinheiro ganho com o meu trabalho como artista e professora, eu podia bancar meu sonho. Mas a isso tudo vinha amarrada a tristeza profunda com a morte do Homem Escorpiano de Olhos Negros, uma semana antes de eu embarcar. O fato de eu estar lá naquele momento devia-se a eu ter escolhido essa outra vida lá em 1976, quando entrei pra faculdade de arte e me divorciei dele. Me doeu muito profundamente pensar nele, nos sonhos que tivemos, ele que parecia um espanhol, ele que me tirou pra dançar numa noite de primavera, ele que me deu um filho, meu único filho que herdou dele os olhos e o porte. Fui chorando até Toledo. Nessa estrada entre Granada e Toledo, me despedi dele, da vida que tivemos e da que poderíamos ter tido juntos.
Toledo, Fonte da Saudade e Maracanã estarão sempre unidos em Hey Jude.
 
7/09/2020
Esta casa que habito hoje não é minha. Há muito tempo que as casas em que habito por uns tempos são de pessoas desconhecidas: pago a elas, pontualmente e impessoalmente através de administradoras, pra isso.
Na sala atual nem os móveis são os mesmos de tempos atrás. Apenas a arca azul foi da minha primeira casa, o apêzinho paulista no bairro de Higienópolis, nosso apêzinho de recém casados, eu e meu Marido Escorpiano de Olhos Negros.
Daqueles tempos, só eu e a arca azul, onde guardo copos de cristal, uma meia dúzia ainda do jogo que ganhamos de casamento, estamos na sala pra assistir “Narciso em Férias”, depoimento sensível , emocionante e contundente do Caetano Veloso sobre quando esteve preso pela ditadura militar.
Ele canta Hey Jude e conta que , quando ouvia essa música tocar vinda de um radinho do soldado que guardava as celas, ele entendia como sendo uma mensagem de boa sorte e o coro final do nananananaaa, fazia com que ele vislumbrasse as portas e grades do cárcere se abrindo.
Emocionada, levantei e busquei uma das taças dentro da arca azul. Bebi um vinho e brindei a todas as portas e grades que se abriram pra mim e ainda se abrem, porque meus ombros "não carregam mais o mundo" e aprendi, também com a canção, que "o movimento que eu preciso está justamente nos meus ombros".

O Resto é Nanananah e o caminho ainda a percorrer. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

VIDEOCLIP RETRÔ

VIDEOCLIP RETRÔ











São Paulo, setembro de 1986
Madrugada gelada, sob o calor do corpo de Jens Winther, que faria aniversário no dia vinte e nove de Outubro, cujos pais eram divorciados, que tinha duas irmãs e um irmão, que era o trompetista de um quinteto que levava seu nome e que também tocava na banda da Radio Copenhagen, e que me sussurrou a angústia de ter uma vida reta, já traçada, um ‘prisioneiro do futuro’ que sentia inveja de um certo tipo de liberdade do povo do Brasil, que podia mudar radicalmente sua vida , se decidisse ou precisasse. Das dinamarquesas, tinha tido muito sexo e pouca ternura, não era casado mas tinha dois filhos com duas mulheres e não gostava do jeito delas, duro e competitivo. Falou do medo que aparecia para ele na forma de um escuro, gelado e vazio castelo no alto de um penhasco. Era assim que algumas vezes ele se sentia por dentro, como este castelo de silêncios absolutos, o Winther’s Castle, como ele dizia. Perguntou dos meus silêncios. Eu não tinha nem medos nem silêncios: só dor. Falou de Veneza para onde costumava ir visitar o pai que trabalhava lá como designer. E do silêncio das abóbadas da Basílica de San Marco. Dormimos muito abraçados.

 Um homem que me desconcertava completamente, tão diferente que era de todos que eu conhecera. De uma franqueza tão absoluta que me fazia duvidar de quase tudo o que ele dizia.

Não falávamos do fim que viria. Cada dia era um dia absolutamente especial e eu nunca mais vivi, com tanta intensidade, o momento presente. Mesmo quando ríamos de todas as coisas, de pura felicidade, de farra quase infantil, havia uma lembrança de despedida que nos intensificava, ao mesmo tempo que nos tornava seres de olhos frágeis, cães sem dono, sem fome, sem esperanças e, por isso mesmo, sem medo. Dançamos a noite toda na festa da minha irmã como dois vagabundos, sob os olhares esbugalhados da minha família. Jens gritava o mais alto que podia um I love You esticado, como se uivasse. Não dava para ouvir a voz dele por causa do som altíssimo da pista de dança da casa noturna onde a festa acontecia. As luzes piscando e o Jens uivando sua declaração de amor repetida obsessivamente, feito um lobo lindo e desesperado. Eu gritava de volta que não acreditava e guinchava um iiiiiiiiiiiiiiiiiii, de believe, que ele também não ouvia.  O fato de o idioma, através do qual nos comunicávamos, não ser o original de ambos, nos fazia ser diretos, precisos e objetivos. Nos fazia, também, entender em profundidade outros sinais e criar outros códigos, gestos quase imperceptíveis,  sentidos de intuição à flor da pele.
Que espécie de amor era esse, agora? Um amor que me acontecia sem eu pedir, que, me quebrava todas as certezas e deixava minha alma como um espelho partido, o meu coração esfarrapado e meu estômago feito um botão. Que despia a minha pele junto com a roupa ao mais leve toque dos dedos dele, expondo todos os meus nervos ao ar. Que me desvendava o temerário prazer dos desprotegidos, nos cantos de uma escada de serviço do prédio em Pinheiros quando, quase nus, no escuro vão entre um andar e outro, nos amamos na urgência do desejo plenamente franco e sem nenhuma culpa, de casal primordial no dia do primeiro sexo. Não tínhamos sede, não tínhamos sono nem fome. Só um desejo enorme que nos dava pernas para continuar dançando e bocas para continuar beijando.

O dia amanhecia branco. Tínhamos combinado na véspera que os últimos dias dele no Brasil seriam passados somente comigo em alguma praia distante. O Baterista sugeriu Boissucanga no litoral Norte, que então era quase deserta, principalmente fora de temporada. Uma pequena sacola era o suficiente. Os que estão amando necessitam apenas o essencial, roupas não pensadas, desencontradas, a escova de dentes e um mapa.
Íamos calados, o vento zunindo na fresta da janela do carro, nuvens brancas correndo rápidas mudavam a luz da paisagem a todo momento, efeito super especial que fazia o mar passar do cinza prata ao mais brilhante verde esmeralda em segundos, para depois voltar ao cinza porque , agora, era a vez da mata à esquerda  iluminar-se em verde ouro.  Às vezes ele apontava o que era impressionante. Às vezes ficava me olhando e enrolando as pontas dos meus cabelos nos dedos, I love your black hair...No gravador, Tom e João Gilberto, ‘Wonderful, marvelous, you should care for me’.
A Boracéia é uma praia enorme, muitos quilômetros de reta por onde voávamos. Stop this car, woman, I need you now. Entramos por um atalho que era pura mata. Ninguém. Uma pequena servidão deixava entrever o mar bravio e cinza. E o areal deserto. Desliguei o carro . Só o vento e o mar. Entre nós, num crescendo, o amor em desespero ia se instalando como podia, primeiro ali dentro  e depois pelo chão coberto de folhas molhadas, trêmulos de frio e de urgência. Ele falava comigo no seu rude e incompreensível idioma, passando as mãos úmidas de terra e folhas pelos meus cabelos e eu repetia meu amor, meu amor, e ele não sei o que dizia. À noitinha chegamos em Boissucanga e nos instalamos num hotelzinho, exaustos, assustando o pessoal da recepção com a nossa aparência. Achavam que tínhamos sofrido algum acidente.
Daí em diante as coisas se passaram muito rapidamente e as lembranças desses quatro dias me vêm todas juntas, como as nuvens de vagalumes que cintilavam no breu por onde vagávamos, à noite, sem destino, nos arredores do vilarejo. De dia era o mar. O desejo chegava a qualquer hora e, portanto, nos amávamos sempre que ele se instalava, não importando o lugar. Já não nos divertíamos como antes. Era mais como um desespero de fim de mundo. Não havia o que dizer, também. Então, fazíamos longos discursos, nos nossos próprios idiomas, que, da minha parte, eram declarações de amor rasgadas, confissões de coração aberto, queixas e súplicas. Imagino que as palavras dele em dinamarquês tivessem teor semelhante. Depois, eram os silêncios, como o espaço entre dois acordes, como as abóbadas da Basílica de San Marco, como os imensos e sombrios corredores do Winther’s Castle.
Em Ubatuba, um almoço régio: camarões empanados, mariscos, frutas, saladas e vinho branco do Reno, e a mão dele me procurando, ávida, por baixo da mesa. O fim da tarde tingiu-se de uma luz estranha amarelo enxôfre e um temporal memorável desabou. Entramos  correndo em uma loja lotada de quinquilharias  de toda espécie: conchas, cocares, apitos, címbalos, berimbaus, pirâmides de pedra-sabão, redes, tapetes, aquele cheiro forte de sisal, e ele escolhendo lembranças para levar. Achou um caminhãozinho de pinho branco. Ficou com o olhar boiando, virando o brinquedo na mão, devagar: __“It’s for my little son” , disse, subitamente invadido pela Dinamarca, como se ele tivesse sido teletransportado  para aquele país e estivesse falando comigo através de uma imagem holográfica, ele e sua jaqueta de couro preto, sua medalhinha de ouro com um escorpião que no ferrão tinha um  rubi, ele e seu andar gingado de marinheiro, ele, o dos cílios louros, o moço escorpiano de Copenhagen, o dos olhos de águas claras. Ficamos em um hotel com cara de anos cinquenta. Arrumamos os dois colchões das camas de solteiro no chão. O abajur era uma cesta de vime  em forma de cone apoiada sobre pés de ferro preto que dava a tudo uma luz amarelada e triste. A chuvarada grossa, sem ventos e sem trovões, fazia um som ensurdecedor de milhares de pedras, ao cair sobre a varanda e o telhado. O último amor foi sem mais nenhuma urgência, durante horas e em silêncio. Suas mãos seguravam firme meus quadris impedindo que meu corpo se descolasse do seu. Lentamente levou as duas mãos sobre o próprio coração e, em seguida, apontou para a janela indicando a chuva e depois, apontou para mim. Vestiu em mim, como se eu fosse um a criança, sua camiseta rosada, estampada Manhathan no peito, as letras no formato de prédios iluminados.
Saímos cedo, subindo a serra sob a neblina branca, a chuva fina e o vento zunindo. Paramos numa lanchonete deserta, que surgiu feito um espectro na beira do caminho, para um rápido café. Eu estava ocupada com os pedidos quando ele me puxou pelo braço e me abraçou forte, enterrando meu rosto no peito dele, e enterrando o rosto dele nos meus cabelos. Me deu de presente, para sempre, a lembrança e a saudade do cheiro forte e bom do corpo dele.
 Deixei-o na casa do Baterista , na Barra Funda. Cheiro de cozido de galinha. Choro de crianças mal educadas e remelentas. Som de um Grande Prêmio de Fórmula Um, na TV.
Não ia dar conta de ir ao Aeroporto com eles.
Liguei o carro.
Ele largou a mochila na soleira da porta e veio correndo.
Abri a janela do carro, beijei-o longamente nas marcas dos lábios, nos dois semi círculos marcados pelo bocal do trompete. E saí avançando os sinais, a neblina grudada nas retinas.

Dois meses depois, desmontei a casa. O moço dinamarquês tinha me dito, um dia, embaixo da Sumaumeira do Jardim Botânico do Rio, que eu não belongued to Saopaulo que eu era aquelas árvores, que eu era do Rio de Janeiro, daquelas praias, daquele clima, que eu swingged num outro ritmo. Em dois meses eu estava decidida a abandonar tudo, casamento, trabalho, amigos e voltar pra casa, voltar pro Rio me arrastar até o mar, procurar o mar, porque esse homem do norte gelado, como ele mesmo gostava de dizer, tinha vindo lá daquelas lonjuras, feito um cometa que marca o céu e vaticina mudanças irreversíveis. Precisou vir brilhar aqui no meu firmamento pra me fazer entender os caminhos de me arrancar da minha inércia.
Arrumei as caixas. Dezesseis anos de São Paulo empilhados no canto da sala em apenas doze caixas. O apartamento, aos poucos, se transformou em vazio ex lugar de tudo,(o que fazer com batons sem tampa, cartas, cartões, conchas, anéis sem pedra, rendas, fotos rasgadas e recoladas, flores secas – a primeira rosa vermelha que ganhei do Marco na Fiorentina, e que me enfeitou os cabelos quando, em seguida saímos pela Atlântica, de braços dados, cantando “Avanti Populi, faciamo greve...”).
Só doze caixas, que estarão ao alcance de mãos que, no dia seguinte, indiferentemente,  tornarão a empilhá-las  no caminhão da mudança. E que assombrarão a sala quando não mais estiverem lá, feito fantasmas da minha presença. Na tarde em que eu vim embora, a sala emudecia sob um sol escaldante. Apenas o espanto do silêncio. Como se um coral de mil vozes entoasse o último agudo e estancasse de repente.

Via Dutra ampla e livre. Dia violentamente bonito, um acinte: vontade de dar porrada nesse dia tão lindo, assim, me afrontando, gargalhando na minha cara perplexa, se engalanando pra minha volta que, de triunfal, não tinha nada. Céu azul, árvores ladeando a estrada feito as estampas cheirosas do sabonete Eucalol que eu guardava na infância. Uma volta quase fuga , negando e renegando e trinegando dezesseis anos, e a cabeça sem compreender como saí com tão pouco  do tanto que me investi. Saí de São Paulo, eu e minha boca pintada, eu e os meus delírios, eu alambique - a cana, a pinga e o bagaço - embriagada do que eu mesma crio, invento e processo. Pequena máquina à vapor que chacoalha, apita e sua. Moto perpétuo da própria essência, patética e inútil como aqueles bonecos de pilha que tocam vários instrumentos, circulando sempre. A estrada bonita tragava os meses, dragava os anos, a vida toda numa golada só; numa golada de óleo de rícino.
Me arrastar até  o mar.
Procurar o mar.

Rio de Janeiro , 1998
Agá tê tê pê barra barra iarrú ponto com- clic –iarrú xópin barra miúsic –clic- jazz-clic-artistdirect-clic- Jens Winther – search –clic...(esssspeeeeeeeraaaaa)...as capas dos CDs surgiram lentamente na tela. O primeiro, reeditado em mil novecentos e noventa e quatro, de um vinil do ano de oitenta e oito, trazia como título da primeira música, “Ubatuba”. Jens, na capa, aparece em foto PB, camisa preta, com a medalha do escorpião.

(Meu deus pagão dourado, cadê tu, bruto?! Foi tudo uma gravação, um vídeoclip retrô? Fruto da imaginação, holografia romântica, viagem alucinógena, visão, visagem, nunca existiu?)

Comprei na hora. Chegou vinte dias depois. Ouço “Ubatuba” e a chuva ainda inunda a memória.
A gente se reencontra na rede...

Rio de Janeiro,2008
Finalmente ele tinha um site. Escrevi do you remember me e anexei mais um tanto de fotos escaneadas que ele nunca tinha visto, de nós dois há vinte e dois anos. Uma no piano bar onde ele tocou Wave pra mim, depois de um cinematográfico beijo na boca aplaudido pela platéia; outra na festa da minha irmã com caras de bois ladrões, e mais uma, numa barraquinha de pescador... onde mesmo?
A resposta veio rápida e torrencial. Lembrava, claro, e contava a vida desde então.
Ele casou e teve mais três filhos além daqueles dois.
(Eu descasei duas vezes).
Ele morou em Nova York e tocou com o Miles Davis.
(Eu vim morar no Rio, montei um ateliê no Jardim Botânico e passei a pintar).
Ele usou todo o tipo de drogas, das mais leves às mais pesadas.
(Eu fazia Yoga, aprendi a ler o Tarô, fiz análise , tomava chás e fazia longas caminhadas à beira mar).
Ele estava se divorciando e tentando sair com dignidade do casamento.
(Eu tinha terminado com o Maurício.)
E terminava dizendo que queria me ver. Que ia dar um jeito , you can believe.

E veio. Arrumou umas apresentações em São Paulo e no Rio.
Chamei por ele no escuro do piano bar, depois da apresentação. Lá estávamos nós, de novo, coincidentemente na mesma data de agosto, só que vinte e dois anos depois, sob o mesmo céu paulistano. Abraços emocionados e beijos afetuosos. Procuro a paixão dentro de mim e não encontro. O que está lá, eu ainda não sei. Procuro ele dentro dele, e encontro apenas vestígios do moço que conheci. Ele fala rápido e sem parar durante horas. Funny é FÔNI. Magic é MÁZIC. Boat é PÔT. Sustento um olhar apaixonado. Ele diz que é so nice to be here with you... you are so easygoing...I'm so glad that I'm here with you… Estamos nos esforçando para fazer jus à nossa história e a este encontro, vinte anos depois, coincidindo na mesma data de 29 de Agosto. Isso , afinal, deveria significar algo, a mesma conjunção astrológica, sei lá...
No Rio, Jantamos num bistrôzinho em Copacabana e, quando enfim as relembranças se esgotaram , o silêncio foi difícil.
Saímos do bistrô já era madrugada. Fomos andar na praia, na areia, perto do mar. Muito diferente de outra caminhada à beira mar, vinte anos antes, no Leblon, quando nos aproximamos de um grupo que acendia velas e entoava uns cantos pra Iemanjá. Desabotoando a minha blusa branca e, beijando meu colo, disse que os deuses, quando querem castigar, atendem aos nossos pedidos.
Agora, o mar estava batendo forte e havia luzes demais.
Ao nos deitarmos, já na minha cama, senti o cheiro dele e tive vontade de não ser essa Eu de agora. Tentei , em vão, ser aquela outra de um dia impresso na memória, quando o sol, filtrado pelas árvores da Mata Atlântica, iluminava o ouro dos cabelos dele e o mel dos olhos da mulher que eu era.

No café da manhã, me contou o lado B.
Heroína pelo nariz durante anos.  Falou dos 5 filhos.O caçula era um tecladista de talento e eles dois estavam desenvolvendo um trabalho juntos. Os olhos naufragam quando diz que vai vender a linda casa no litoral dinamarquês pra ir morar na Alemanha. Os contatos de trabalho na Alemanha são bons e promissores. Falou da ex mulher. Que é insegura e possessiva. Que foi mais fundo nas drogas que ele. E que ele está procurando uma maneira digna, amorosa e honrada de sair desse relacionamento de quase vinte anos. 

Eu escuto. Eu olho. Percebi que eu gosto mais da nossa história do que propriamente dele. Que roncou a noite inteira feito um viking depois do festim. As histórias serão sempre minhas, enquanto eu quiser. Elas, as histórias, são afinal o que nos resta.

Passei o dia todo resolvendo se ia ao show dele lá no Centro Cultural Carioca.

(Talvez o último capítulo deste conto devesse ser este que acabei de escrever.
Depois, o The End e, entrando como trilha sonora, ‘Once Upon a Summertime’,no trompete de Jens Winther . A cena fecharia com o nosso beijo na aléia central do Jardim Botânico, sob o céu azul e o vento fresco da primavera chegando, balançando as folhas das palmeiras imperiais. A ficção é mais correta que a realidade. E sempre faz sentido.)

-"You look specially beautiful tonight…"
Se fosse só por este elogio já teria valido a pena não ter amarelado e, sim, ter ido ao show no Centro Cultural Carioca.
Demorei decidindo vou não vou, e cheguei atrasada, já ouvindo o trompete ecoando na praça vazia e iluminada, em frente ao Real Gabinete Português de Leitura. Não tinha muita gente. Segunda feira, ainda por cima de inverno, friozinho, os cariocas não se atrevem. Perderam. Aconteceu a tal da mágica entre os músicos e a Jam foi espetacular. Deu liga. Foi esplêndido.
A produtora sentou a meu lado: "Você é a namorada do Jens, não é?" -"Praticamente."
Agora ela me pedia que desse dipirona pra ele, que estava com um febrão e que o acompanhasse no hotel até que melhorasse. Dia seguinte tinham que estar no Santos Dumont muito cedo porque, à noite, iriam tocar em Bêagá no festival de jazz de lá.
Mandei colocarem mais três garrafas d'água no palco e guardei o remédio pra depois.
Fomos pro hotel Ibis a pé, eu , ele, os músicos e a produtora. Tudo parecia mesmo um filme: as ruas desertas do centro da cidade, com os prédios iluminados em amarelo, cenografavam a curta caminhada.
Ele estava com muita febre de novo. Dei o remédio. Nos deitamos abraçados, mesmo vestidos.
Me falou que tinha gostado demais de ter estado na minha casa. E agradeceu por eu o ter acolhido na minha intimidade. Aquele jeito de polite guy novamente .
Cochilo. Ele começou a suar.
Já eram quase três horas. Decidi que eu precisava ir embora e dormir direito. Não ia aguentar outra noite de roncos furiosos... Chamei um táxi, e ele fez questão de me levar no elevador.
O último abraço e beijos. Me olhou longamente, talvez procurando Eu em mim.
A porta de aço fechou.

O taxi me esperava na rua deserta, em frente à Catedral Presbiteriana.

(O drone sobe e, do alto, filma o carrinho amarelo desaparecendo em direção aos Arcos da Lapa. Música incidental: Round Midnight. No trompete, Jens Winther.)

Epílogo
Primeiro foi o susto.
Eu estava na internet na madrugada de uma sexta feira abafada de março, 2011. Desde aquela noite no Centro Cultural Carioca, trocamos alguns emails e nada mais. Nem sabia que ele estava morando na Suíça.
A morte formata definitivamente as histórias e suas lembranças. Cria lógicas. E, de um modo ou de outro, tudo se explica, tudo são respostas, tudo se transforma em versões. Tudo se transforma em ficção e, por fim, faz sentido.
“Parece que o Jens foi encontrado morto na casa dele, em Genève.”
Foi o recado que alguém postou na minha página do youtube, como comentário de um filme que eu fiz dele tocando Round Midnight no Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo, enquanto os músicos desmontavam a banda. Ele naquele palco do subsolo, vestido de preto, a cabeleira brancoprata iluminada pelo sol do meio dia que atravessava a clarabóia.
Hades no Hades.
Recorri ao Google e estava lá a notícia.
Ele nunca mais estaria em algum lugar do mundo, esse mundo que acabou ficando tão pequeno depois de emails, skypes, celulares. Chegamos a marcar um encontro em Berlim , adiado, desmarcado, adiado...

O dia amanheceu e eu saí.
Fui andar e chorar na praia, escoltada pelos Dois Irmãos, abraçada pelo vento Leste, de peito aberto para o Arpoador. Quando alguém assim morre, a pessoa que a gente era para aquela pessoa, também morre.

Um dia, eu escrevi este conto.
Um dia, ele compôs duas músicas. Ubatuba e Tomorrow Dreams. 

É o que realmente fica.

A Laurie Anderson escreveu uma coisa mais ou menos assim: A gente morre 3 vezes. A primeira, quando o corpo para de funcionar. A segunda, quando somos enterrados ou cremados. A terceira , e definitiva, é quando deixam de falar nosso nome


                        A última foto de Jens Winther



















*fotos da internet



terça-feira, 5 de novembro de 2019

Zuleika Hanum , ou Sobre Refugiados





Um dia apareceu um desconhecido tocando a campainha de casa. 
Eu devia ter uns 15 ou 16 anos e estava ao lado da minha mãe quando ela abriu a porta.
Era um homem diferente.
Usava um terno pesado preto, gravata também escura sobre a camisa branca e um chapéu. E possuía uma barba espessa. Talvez fosse jovem. Era alto. Ali, na quase penumbra do hall do elevador, causava uma estranheza incômoda.
Mas tinha um olhar doce. Um jeito de gente mansa. Um quase pedir desculpas por existir.
Com forte sotaque, explicou que era  parente de uma vizinha israelita que morava dois andares abaixo do nosso apartamento. Perguntava à minha mãe se ela podia ajudá-lo comprando um disco onde ele próprio cantava "uma bonita canção". Falou de dificuldades de estrangeiro recém chegado, que tinha abandonado a Pátria, que mal falava o novo idioma. Falou de recomeço de vida.
Minha mãe hesitava com o disco na mão, olhando ora pro homem ora pro disco. A importância que ele pedia era irrisória. Mamãe e eu nos olhamos e ela foi buscar a carteira com o dinheiro.
O estrangeiro se derreteu em agradecimento. Foi embora e nós nunca mais o vimos.

Ainda hoje sei cantar partes daquela música. O engraçado é que ela me vem à memória com letra em português mas com um sotaque carregado do homem que a interpretava, naquele disco de baquelite preto.

                           "Zuleeeeeeeeika Hanum...
                            D' Úriente mais bunita és tuum
                            Zuleeeeeeeika Hanum
                            Seus olhos son azuis comu céúú
                             (.....)
                            Con Zuleika ia me casar
                            Hoje vivo eu com sodádi
                            Longe do Zuleika na cidadiii"

Acontece que eu não conseguia ouvir o disco sem chorar. Toda a história daquele homem refugiado e ainda a melodia melancólica, me tocavam tão profundamente e eu chorava.

Minha mãe já fazia pra me provocar, eu que tinha fama de não chorar por nada.

Procurando na internet, achei uma versão pop publicada em 2013, com uns rappers fazendo mix.

Só entendi uma palavra: azerbeidjani.

Fiz um recorte para ouvir somente a parte mais antiga .







Primavera nas Vinhas


Nosso desejo recua, recua, recua, sobe as colinas floridas da Síria e se instala na pequena aldeia de casas pétreas dos nossos ancestrais.
Nosso desejo sorve, aspira, traga, engole todos os desejos que há setecentos anos se instalaram ali, desde que os primeiros da nossa estirpe iniciaram suas bodas entre si.
Nosso desejo incorpora todos os desejos entre iguais, todas as uniões, todos os incestos, todas as seduções, todos os desesperos, todos os danos, todos os abandonos, todas as solidões, os delírios, os êxtases, as febres, as culpas e os medos. E também todas as bocas que gritaram suas paixões, ou as que as calaram, ou ainda as bocas que se colaram ocultas à sombra das videiras.
Nossos corpos são todos os corpos no exato momento dos defloramentos e das manchas rubras nos lençóis de linho, no exato momento do descontrolado tremor de todos os prazeres, e abrigam todas as barrigas prenhes e todo o sêmen das sempre novas e infinitas gerações que se amaram entre si, e se sucederam, e se sucedem e se sucederão.
E este imenso e ancestral desejo desce as colinas floridas da Síria de volta, como uma ressaca gigantesca que arrasta consigo as flores, os templos, as cidadelas, os ícones nas paredes nuas, os tapetes, os brocados, as bandejas de ouro, as tamareiras, e se multiplica como os ramos das videiras que nossos avós cultivavam quando moços .
E esta videira agigantada, revigorada, explode em uvas de mel, alastra-se feito uma renda, atravessa os oceanos e, nos surpreendendo, nos enlaça, tornando-nos cada vez mais iguais e cada vez mais desejosos do que em nós é tão igual: nossas mãos largas, nossos cabelos anelados, nossos olhos enormes, nosso desejo que, enfim, é o mesmo desejo, marcado no bater de todas as botas dos homens nas intermináveis fileiras do dâbk , o mesmo desejo que rodopia solto nos lenços nas mãos dos anciãos.
E nos entrelaçaremos , destino de videiras, colados dos ventres às bocas, gêmea tessitura de pele que porejará o mesmo suor de mel das uvas com as quais se fartavam nossos avós, bisavós, trisavós e assim para trás, até os que fizeram a primeira colheita e depois se amaram merecidamente sob o sol.
E nos amaremos merecidamente sob o sol.