sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Que é isso, presidente... que é isso!

Nasci sob o signo da Pannair do Brasil. Meu pai trabalhava no balcão da companhia quando conheceu minha mãe e, a paixão foi tão fulminante, que ela engravidou de mim e teve que desmanchar o noivado - de aliança e enxovais de renda - com um outro moço de boa família, com quem ela estava quase de casamento marcado. Aquele 'turco', filho de imigrantes sírios,  não estava pra brincadeira. Casou apaixonado, num dia de abril, na igreja de Nossa Senhora de Copacabana, na Praça Serzedelo Correa, que tempos depois foi demolida pra dar lugar a um prédio esquisitão. Ainda bebezinha, eu passeava nos amplos saguões do Aeroporto Santos Dummont , sobre os carrinhos de bagagem, empurrada pelos carregadores.
Quando, depois do golpe militar de 1964, a Pannair foi fechada,  meu pai ficou consternado. Já não trabalhava mais lá. Tinha sua própria agência de turismo , uma das primeiras e mais bonitas do Brasil. Mas, me lembro bem dele inconformado com o golpe , com o encerramento da Pannair e com a deposição do presidente João Goulart. Gostava do Jango. Identificava-se com ele. Eram gaúchos , da mesma geração, casados com mulheres complicads e lindas. Gostava de como o Jango conduzia a política, achava que as reformas precisavam acontecer para que o país pudesse ser mais justo. Às vezes eu ficava sentada nos degraus da escada, nas altas horas, ouvido atrás da porta da sala de jantar, as discussões acaloradas de meus pais com meus tios, que eram totalmente a favor do golpe, que eles chamavam de 'revolução'. Quando aprendi o que era socialismo na escola, me identifiquei e passei a compreender o que meus pais admiravam tanto no Jango. Eu era socialista. Eu também 'era Jango'. E discutia na escola, mesmo sendo proibido falar de política.
No Carnaval de 1967 papai resolveu que iríamos conhecer o lugar onde ele tinha nascido - Pelotas- e a cidadezinha onde tinha se criado - Jaguarão. Depois, iríamos a Montevideo e Punta del Leste, atravessando de trem a fronteira.
Um dia, em Punta del Leste, ele acordou agitado. Apressava mamãe, nos apressava a mim e minhas irmãs, para que nos aprontássemos logo, e andava de um lado pro outro, e fumava e, bah! que vamos logo com isso!
Fomos até um bonito bairro de casas modernas sobre gramados bem cuidados. Não havia ninguém transitando pelas ruas limpas e arborizadas. Notei que papai, mais do que tenso, estava nervoso. Descemos em frente  a uma dessas casas. E , mamãe, tentando ser natural, disse, assim como quem não quer nada, que papai tinha uma encomenda pra entregar pro Jango. Arregalei o olho. Mas... calei diante do olhar fulminante dela. A casa era boa mas simples. Térrea, tipo moderna dos anos 50, com uma varandinha na entrada, de mureta baixa e chão de cerâmica São Caetano vermelha . Quem estava nos esperando era a Maria Tereza. Linda! Umas feições muito delicadas, pele morena, olhos verdes rasgados, cabelo liso castanho , preso num coque. Usava calça de verão amarela clara, tipo cigarrette, e uma camisa branca de manga curta. E roía muito as unhas. Sugeriu que sentássemos ali no chão da varandinha porque o Jango estava um pouco atrasado, mas já vinha. Meu pai não aguentou. Foi pra esquina esperar. Minha mãe, minhas duas irmãs, eu e Maria Tereza, sentamos ali mesmo.Ela não falava nada. Nem nós. Lembro do olhar de soslaio que minha mãe lançava pra ela. Meio de admiração, meio 'porra, porque essa mulhar não fala com a gente'. De repente, lá vem meu pai devagar, conversando baixo com Jango. Levantei e o coração batia mais rápido. Jango veio soridente. Achei que ele estava 'meio triste'. Hoje diria que estava abatido. Meu pai, ainda tenso, mas já com um ar de satisfação, uma expressão de alívio, talvez, no meio sorriso. Nos apresentou. Eu apertei e mão dele, dizendo 'muito prazer, meu presidente!' .Ele riu largo e me fez uma carinho no queixo. Foi só então que percebi um grande envelope pardo nas mãos do meu pai e uma caixinha de veludo comprida. Primeiro, Jango abriu a caixinha. Era uma caneta  Parker de ouro que papai dava de presente pra ele. Senti tanto orgulho do meu pai naquela hora... Depois, Jango abriu a porta da entrada que estava trancada à chave e meu pai, com um olhar, combinou com a minha mãe que nós ficaríamos lá fora, na varandinha. Maria Tereza, pra ser gentil, ficou conosco e conversou algumas amenidades com mamãe. Um tempo depois, saíram papai e Jango lá de dentro. Reparei que o envelope não estava mais à vista. Jango abraçou fortemete papai e agradeceu várias vezes. 'Que é isso, presidente... que é isso!'. 
Não sei até hoje o que havia no envelope. Documentos? Dinheiro? Provas? Meu pai morreu no Natal daquele mesmo ano. Minha mãe também não sabia o que havia no envelope. Mesmo sendo um 'cidadão acima de qualquer suspeita', um comerciante rico do ramo de turismo, um típico sírio libanês, dono de um cadillac branco , de um apartamento de cobertura no Flamengo e outro  de 500 metros quadrados de frente pro mar do Leme, dono da agência  mais bonita do Brasil no centro do Rio, de um sítio em Jacarepaguá e mais alguns terrenos em Araruama, ele correu sérios riscos. Mas era um homem justo. E de convicções. E do signo de Áries. Um jeito ele ia dar. Um jeito ele deu. Como deu jeito de conseguir visto de entrada no Brasil pro Pablo Neruda. E de saída do Brasil pro Jorge Amado. Ficou muito rico por esforço próprio, trabalhando duro desde muito jovem. Mas era de esquerda e Flamengo. 

terça-feira, 30 de abril de 2013

Cartas nunca enviadas

http://www.youtube.com/watch?v=x6KkJ6-Ecxw

Carta à amiga (1986, São Paulo)



Quase cometi um desatino e te telefonei aí nas Alemanhas, right now. Precisava, na verdade , que estivesses  no apê da Leandro Dupré , para um chá bem dos nossos, à meia luz do abajurzinho da TokStok. Na falta, sento-me – e sinto-me – só, ouvindo a Laurie Anderson, testemunha dessa nossa amizadona, essa geminidade de alma e idéias e de dor, partilhantes da mesma seita, irmandade, clube, sei lá, acima – e abaixo!- do bem e do mal.

O que eu ia te dizer num telefonema internacional?

Que me ocorre que os homens estão perdidos dentro da ORDEM e nós, perdidas dentro do CAOS, Julietas de todos os espíritos, pitonizas de destinos ilógicos, carpideiras precoces do que as multidões só chorarão depois. Choro agora o que só será pranteado mais além, quando meus olhos estarão novamente úmidos, mas por outros novos e insondáveis motivos, não menos justos, porém. A traição por antecipação, pois todos se sentem traídos quando não choramos mais com eles, quando estamos por fim cansadas das lamúrias, e ladainhas, e buscamos, com insana alma, o âmago de outros âmagos, para seguir traindo tudo e todos, indiscriminadamente, por chorarmos o que ainda não é dor para os outros, pobres outros.

Agora as cortinas japonesas das janelas enlouquecem num repentino vendaval que faz rodopiar as samambaias no clarão dos raios. Meu corpo cheira a cigarro e a suor. Sou aquele avião pisca piscando, sim e não, voando no caos dessa chuva de verão.

Não quero a Ordem que já existe e nem quero inventar outra pra mim. Quero saber viver no Caos, salamandra no fogo que não se queima nunca, avião na tempestade que não cai. Ser o Caos, estar no Caos, viver o Caos.

Minha casa vai, aos poucos, se transformando em vazio ex lugar de tudo: flores que juntei distraída pelas ruas, sutiã que estava apertando, batons sem tampa, cartas, cartões, conchas, anéis sem pedras, rendas, fotos – ai, as fotografias...E eu, Pandora às avessas, meto tudo em caixas.Dezesseis anos que guardam-se em algumas poucas caixas empilhadas no canto de uma sala vazia. Como restou tão pouco do tanto que me investi? Amanhã estas caixas estarão ao alcance de estranhas mãos que, desavisadamente, tornarão a empilhá-las no caminhão.

Na vida dele entrei de sola e, agora, saio de mansinho. O beijo deixei lá no espelho, kitsch comme Il faut, a um vero the end de amor.

Amanhã saio daqui correndo.

Quero a estrada livre, ampla, a Rio Santos que me levará de volta pra c-a-s-a.



Carta ao amigo (1988, Rio de Janeiro)



Notícias minhas.

Vou vivendo sem amanhãs, afogada nesta brisa estonteante trazida dos confins em aromas de mares e matas, nos zumbidos das cigarras e sob a atemporalidade constelada dos céus do sul. Finalmente mais Alberto Caeiro do que Álvaro de Campos, se bem que insistindo em ouvir Tom Waits, e as inocências do sonho parecem adquirir seu sabor mais agridoce daqui do alto da minha sacada, ao me deparar com este imenso Eldorado Pantanoso em liquidação, pra acabar, só até sábado.

Fim de milênio e talvez fosse mais sábio baixar a guarda e deixar que o planeta nos redimisse num último e envolvente suspiro, nos aquecesse e nos tragasse para suas profundezas de jasmins e maresias.

Só me resta o céu de cetim azul claro, onde Marte já me aponta seu olho vermelho. Nada se mexe e eu também não: aguardamos o hálito cálido de hortelã e clorofila de uma brisa alucinógena que costuma chegar no exato (?) momento em que escurece totalmente, a embriagar incautos e loucos.

E a sua loucura, como vai?

quinta-feira, 11 de abril de 2013

A Espera

A Espera estabelece novos paradigmas de tempo. Há uma espera que é física, que é temporal:"esperei tantos minutos na fila para ser atendida".
Mas há uma outra Espera que não se relaciona com os ponteiros do relógio nem com o espaço físico de um restaurante ou de um cinema. É a Espera emocional pelo tempo do outro, quando é necessário um ajustamento dos relógios internos, um ajustamento meticuloso nos mecanismos deste 'relógio' emocional interno, para que ele não dispare e para que ele não se atrase. Para que ele possa dar um ritmo preciso às ações amorosas, para que estas não invadam e não se omitam.
Esta espera se relaciona com a eternidade, com a atemporalidade e, o espaço que ela ocupa, é todo o espaço interno do corpo e da alma.
O mecanismo que possibilita o funcionamento deste ajuste interno é o Amor.
Esta Espera é uma das manifestações do Amor.


[Do meu caderninho no.3, "A ESPERA", dia 28 de fevereiro 2013 >>> da série "MAKING OFF DE UMA VIGÍLIA APAIXONADA"]

domingo, 24 de março de 2013

Nosso Pequeno Grande Conto



Foi numa esquina, que antes era uma esquina qualquer, e que agora não será jamais uma esquina qualquer. Foi ali , numa esquina de Ipanema, que agora, dali pra frente , será importante, terá um significado, terá uma memória que provocará um sorriso a cada vez, e fará aflorar a frase “foi aqui...”   
Era uma tarde comum de verão , em janeiro. Fim da tarde de um sol dourado e maduro, filtrado nas amendoeiras, e havia brisa. As pessoas passavam indiferentes. Algumas podem até ter  reparado ligeiramente naquele casal parado na esquina . Ele já tinha falado quase tudo, durante quatro horas e meia na varanda do restaurante,  dos medos,  dos sentimentos e seus matizes, das vontades e do passado. Ela escutou atenta aos olhos dele, às mãos dele, ao peito dele entrevisto na camisa branca. Uma vontade tão grande de pegar nele, nas mãos, no peito, beijar-lhe a nuca e a boca. Mas ouviu atenta aquele relato transbordante, e amou a coragem dele. Aquele homem tinha vindo de longe e ela ficava imaginando ele sozinho naquele trajeto, vindo, vindo, só praquele encontro, onde muitas coisas difíceis precisavam ser ditas e muitos sentimentos precisavam ser vividos. Uma história que talvez pudesse começar ali. Uma parte da vida dele que talvez pudesse recomeçar ali. Um delicado reaprendizado de sentimentos frágeis.
Agora estavam na esquina, esperando o táxi especial que vinha buscá-lo, após as quatro horas e meia de encontro, que afinal passaram tão rápido.
Foi quando ela  se debruçou sobre ele, ela e seu vestido cor da noite, comprado especialmente, ela e seu coração feito um corcel doido solto no peito, e, se sentindo como a noite que acolhe o viajante, ela finalmente o beijou na boca, ali, no meio da rua, de uma tarde comum, um beijo prolongado e quente, que durou  o tempo eterno e indelével que duram todos os primeiros beijos, o tempo que não se mede nos relógios.
Ele foi colocado dentro do taxi.
Ela  saiu sem olhar pra trás. Na alma, o temor de ainda ser capaz de tanta leveza e tanta doçura.
Procurou os óculos escuros na bolsa e não estavam. Saiu andando. E andou, andou, andou até o Leblon, com o sol poente a lhe fazer brilharem as lágrimas.



sábado, 19 de janeiro de 2013

Como Dois Irmãos

"Oh, somewhere in my mind there is a painting box 
 I have every color there, it's true  
Just lately when I look inside my painting box 
I seem to pick the colors of you" (Incredible String Band)

...e tinha a casa velha do Sítio, com o quarto dos beliches e as canequinhas de barro pra tomar o leite saído direto das tetas das vacas holandesas da cocheira, malhadas de preto e branco e, enquanto o Gustavo montava orgulhoso o Vió - era o único que conseguia -, nós dois imaginávamos vinganças mirabolantes para fazer sofrer uma coelha que havia comido os próprios filhotes e que, momentos antes, havíamos testemunhado, entre curiosos e horrorizados, o hediondo crime daquela Medéia peluda, linda e desalmada, mas já seguindo pelo meio do bosque de pinheiros até a Pedra dos Sete Abutres - sem que nunca, mas nunquinha mesmo, tenha pousado um abutrezinho sequer, nome que o Gustavo inventou, tirado de um filme de caubóis - pra chegarmos no Pinheirão, que vocês meninos subiam até os galhos mais altos, o bicho balançando, eu gritando aqui embaixo desceeeeeedaíííí..., recostada nos galhos mais baixos, onde eu gostava de ficar lendo meus romances até escurecer e as letras embaralharem, pra depois saciarmos a interminável sede na fonte do Vovô ( penso que, enquanto escrevo isso , ela ainda está lá, jorrando aquela preciosidade, initerruptamente, talvez pra ninguém), correndo afogueados pra casa ao ouvirmos o gongo chinês chamando pro almoço que a cozinheira Dona Gertrudes já tinha aprontado pra nós e que cheirava tão gostoso a louro, cominho, noz moscada, quando devorávamos o repolho roxo à moda alemã, recém colhido na horta , feito com o Crema da Lêca que o caseiro alemão , seu Tremell, não conseguia chamar de creme de leite por nada nesse mundo, devorávamos aquela comida fresca, natural e saborosa, na saleta ao lado da sala de jantar, de pratarias inglesas e naturezas mortas do Di Cavalcanti, na nossa saleta contigua à cozinha, onde podíamos rir  e brincar, e sair apressadamente em caravana armada de facões que os meninos mais velhos levavam - Sebastião, Cláudio José, Augustozinho e Gustavo - pra abrir o mato,  e nós, os menores, você , eu e Otto Alexandre ( por onde andará, meu Deus...) , pra mais tarde voltarmos triunfantes com uma ossada, uma arcada de boi, que sonhávamos ser de algum dinossauro - pequeno, na verdade - mas que , às gargalhadas , Dindinho contestou e garantiu que devia ser do touro mais temido, o Stralsund, que tinha desaparecido misteriosamente há anos, o que já dava um certo status pra nossa descoberta e motivou a criação de um pequen museu de horrores na garagem, com aranhas bizarras, cobras jararacas e corais, besouros e pedras que recolhíamos durante as horas perambuladas, com a Taça do Gigante, nossa árvore adorada, a servir de guia, quando subíamos os morros após as chuvas de janeiro em busca dos cogumelos comestíveis escondidos nos troncos, que enriqueceriam as omeletes douradas na hora do jantar, chegávamos até o Belvedere pra admirar a vista da serra de Friburgo e a cidade de Teresópolis lá embaixo, descer mais um pouco e esperar o por do sol no Banco da Estrela, pra ver a estrela Vésper, que é a D'Alva, que é Vênus, e descer o morro na carreira, noite fechada, cantando, em busca do fogo da lareira da casa nova, que o Paulinho já havia aceso, essa casa nova,com cara de antiga, cheia de conforto, beleza e arte, e aos domingos era tão triste ir embora, despedir dos cachorros, o Alex - que era "meu" - e o Duke, que era "teu", as cestas de verduras e frutas, os cremes e os queijos pra levar, o último olhar do portão e o voo dos gansos rosados pela luz do poente...e a nossa vida na cidade parecia insípida mas, vista daqui, nem tanto, com todas as festinhas, a Hard Day's Night na vitrolinha e eu ensinando a você e ao Eugen a dançar o iê iê iê no meu quarto na Senador Vergueiro, 'preparando' vocês dois pra festa da Ana Elisa no Monte Líbano, Sonny and Cher no maior volume ' It's Gonna Rain Outsiiiiiiiiide, ôuôô', e These Boots Are Made For Walking, e caminhamos, você com uma cara gozada, de óculos quadrados e cabelos esticados na minha festa de quinze anos, black tie no Copa e, ainda "no tempo em que se festejava o dia dos meus anos", você de calça Saint Tropez, boca sino, cintão de couro, em outra foto onde estou super pop, de cabelo chanel e mini saia pink, um mês antes da  morte de seu Nassib, a casa ainda com todos os enfeites do Natal, as frutas , as nozes, as castanhas, o pinheiro, e as pessoas incrédulas, e as pessoas me dizendo que eu 'precisava ser forte', o velório no São João Batista lotado, a missa na Candelária, onde fiquei duas horas em pé, com a mamãe (tão linda, tão jovem), e as meninas, recebendo os pêsames e sendo 'forte', e as noites de terror que se seguiram, nas quais o rosto doce da tua mãe e a força serena do Augustozinho, muitas vezes chegando ainda com a camisa do pijama, para nos acompanhar, para nos serenar, para tentar trazer um pouco de paz à mente tão turbilhonada da minha mãe, mas vida que segue, e você com uma câmera foderosa na mão, se interessando por fotografia, tirando fotos minhas no apê da Av Atlântica , pra fazer um 'poster' que o Mauro, meu noivo na época, tinha encomendado e que você nunca entregou, mas que tenho algumas ampliações e as provas contato até hoje, lembro ainda da admiração e inveja que senti, quando você me mostrou um anúncio da Escola Superior de Propaganda , em São Paulo, que havia sido publicado no Pasquim, me dizendo que iria pra lá,pro Progresso, pra Metrópole, pro Sucesso, sozinho pra cidade enorme, e eu senti que alguma coisa da infância morria naquele instante, o meu companheiro quase irmão quase gêmeo, assumindo uma vida longe de mim, mas você veio pro meu casamento no Mosteiro de São Bento, o dia tão azul e quente de dezembro, eu eu fui visitar a tua mãe, ainda vestida de noiva,internada no Hospital São José, as enfermeiras, os médicos, os pacientes falando pelos corredores "-a noiva! a noiva!", eu segurando o véu comprido e correndo porque os convidados já me esperavam no almoço do Iate, e eu a beijei e notei que os olhos dela estavam maiores e ela me pareceu, pela primeira vez na vida, pequena e frágil e saí ventando, do modo que entrei, para uma vida nova, na cidade enorme, eu também iria pra São Paulo, na Metrópole eu me aventuraria, como você, meu quase irmão, quase gêmeo, fui pra mesma Faculdade que você e curtíamos o banzo do Rio numa padaria na esquina da Brigadeiro Luiz Antônio, tomando um expresso e comendo croissants nos dias gélidos da paulicéia, e nesse início ainda nos encontramos bastante no meu apêzinho da Brasílio Machado em Higienópolis, muita cana Tirich Mirr com limão e mel, muita manga rosa, muito Incredible String Band e Pink Floyd, e a TFP te acordando aos domingos de manhã, na pensão da Rua Pará, gritando palavras de ordem e empunhando estandartes em nome da tradição da família e da propriedade, ao que você respondia tomando uma mescalina e desenhando imagens delirantes e lindas, ainda lembro sua expressão , junto com a Bethinha, os dois com cara-de-reis-magos-no-presépio, me vendo amamentar o Rodrigo, depois a vida foi seguindo e só me lembro de te encontrar na esquina da Paulista com a Consolação, numa noite abafada de Dezembro, tínhamos assistido pela enésima vez Jules et Jim do Truffaut, sem saber que estávamos na mesma sessão, nos encontramos na rua, eu quase sem voz, afônica de cansaço, stress e tristeza, me joguei nos teus braços aos prantos e te contei que eu estava indo embora de São Paulo, que estava me separando, que estava indo pra casa da mamãe na rua Santa Clara, e chorava e pedia pra você ir me visitar, e você não dizia nada só me abraçava forte e fazia que sim com a cabeça, e eu entrei no meu fusquinha, o famigerado Boy da Mooca, meio na contramão da rua, meio na contramão da vida, e voltei pro Rio, dias depois, a Via Dutra ensolarada e linda, me lembrou as figurinhas do sabonete Eucalol que a gente colecionava na infância, eu e minha boca pintada, eu e meus delírios, eu alambique - a cana, a pinga, o bagaço que eu mesma destilo, bebo , me embriago do que eu invento e processo, uma pequena e rudimentar máquina a vapor que apita, chacoalha e sua, moto contínuo e perpétuo da própria essência, patética e inútil, mas hoje, tantos e tantos anos passados, pudemos nos encontrar para um almoço absolutamente delicioso no Bar Urca, quando nem falamos de nada disso, falamos das nossas vidas boas e realizadas, você em Sampa e eu no Rio, La Felicitá.
Ponto. 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A Composição dará Forma à Criação









 Reuni aqui ilustrações que criei nas páginas de uma agenda, quando iniciei a análise, em 1991.
Tinha assistido ao filme Asas do Desejo, de Wim Wenders, e criei um anjo pra me acompanhar na jornada.

 
No dia 18 de março daquele ano, escrevi na agenda:
"Todas as coisas são de tal natureza que quanto mais abundante é a dose de loucura que encerram, tanto maior o bem que proporcionam aos mortais. Sem alegria, a vida humana nem sequer merece o nome de vida". (Erasmo de Rotterdam, séc. XVI)