domingo, 7 de outubro de 2012

Adolescente ideológica

Rio, 30-9-65, quinta feira

Dia 3 de Outubro, domingo, vai haver eleições. Nosso candidato aqui em casa é o Negrão de Lima do PTB. O que nós odiamos é o Flexa Ribeiro, da UDN. Agora mesmo está havendo um comício do Negrão lá no Méier. Mamãe e Papai foram. Ô...tomara que ele vença! Não quero ditadura nem nazismo neste país. E se votarem no Flexa, isto acontecerá. Dizem que nós somos comunistas. Nesta terra é assim: basta olhar para um pobre, é-se comunista. Não se foi do partido do Lacerda (UDN), é-se comunista. Vão todos à MERDA! Isto sim! Quero um Brasil melhor, mas um Brasil brasileiro acima de tudo. Estes cretinos da UDN estão nos entregando, nos vendendo aos poucos para os americanos. Para se ter um Brasil melhor e brasileiro, é preciso dar chance do pobre trabalhar e progredir com o rico. Não deixá-lo de lado e pedir a 3 por 2, dinheiro a americano, que não fica nem bem.Eu os odeio! Seus...seus...ENTREGUISTAS!
Amanhã tenho prova de Geografia. Estou de Vietnam, Afeganistão, China e outras coisas, até aqui.

Bom. Vou dormir, que amanhã é cedo.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A BONITA



“J’ai trouvé la définition  du Beau, de mon Beau. C’est quelque chose
d’ardent et triste, quelque chose d’un peu vague, laissant carrière
à conjecture” ( Charles Baudelaire, 1851)

Ele e sua família tinham–se mudado para o Rio de Janeiro, vindos do Norte. Na ocasião, era um menino alto e muito magro para os seus doze anos e, no princípio, estranhou esta nova cidade, o barulho dos inúmeros carros e suas buzinas, o som dos bondes nos trilhos que passavam bem em frente ao portão do enorme casarão de Botafogo. A cidade de onde tinha vindo era bem mais tranqüila, sombreada por seculares mangueiras, imersa no calor equatoriano quase insuportável que grudava tudo à pele, onde os encontros eram marcados para antes ou depois da chuva. Um lugar impregnado de outros perfumes bem diferentes deste cheiro adocicado da maresia que, a uma determinada hora da noite, ocupava densamente os espaços, misturando-se aos jasmins do quintal do casarão, não o deixando dormir, o peito apertado num sentimento desconhecido que, ao tornar-se homem, reconheceu como melancolia. Sentia uma vaga sensação, como se invadisse secretamente espaços proibidos, a Caverna de Tesouros do Ali Babá, As Minas do Rei Salomão que vira no cinema, o interior da Basílica dourada de sua infância onde se realizaram todos os casamentos, batizados, missas de bodas e de sétimo dia de sua família, com seus amplos espaços e ecos. Esta nova cidade era de uma beleza perturbadora assim como quase todas as pessoas a quem ia sendo apresentado. Uma infinidade de tons de pele que variava da mais clara e rosada porcelana ao negro mais azulado, diferente de sua região amazônica de peles quase uniformemente morenas e espessas. Sua fisionomia de índio com o cabelo muito liso e preto a cair-lhe na testa, não importando o quanto gastasse de Gumex e horas esculpindo o topete, lembrava-lhe sempre sua condição de quase estrangeiro neste país de países.

O sol da tarde de verão batia em cheio na varanda comprida para onde se voltavam as janelas dos quartos do casarão. As cigarras assobiavam muito alto. A mãe dele tinha preparado um lanche de bolo de aipim e refresco gelado de laranja, colocado as palmas vermelhas compradas de manhã, na feira, dentro do melhor vaso de cristal, toalhas bordadas do enxoval, talheres de prata, separado boas roupas para ele e para a irmã mais nova, supervisionado o banho deles, a água de cheiro, o penteado, e estavam há horas, de acordo com a impaciência dele, esperando imóveis,  sentados no sofá de palhinha da sala, para não suarem nem desarrumarem nada. A mãe tinha dito que as pessoas desta cidade eram muito elegantes e não era absolutamente de bom tom chegar pontualmente à hora marcada para um lanche na casa de outra pessoa. Deveriam esperar quietos para não ficarem parecendo uns índios horrorosos e assustarem as visitas. Mal conseguiram ouvir o sino do portão tocar, abafado pela barulheira das cigarras.
A moça era muito jovem e estava mesmo uma beleza naquele vestido de fustão amarelo de alça, cintura muito fina apertada num cintinho branco, a saia rodada e, nos pés, delicadas sandálias de couro branco. Ficou um bocado perturbado quando ela o beijou várias vezes, dizendo que ele estava ficando um rapaz muito bonitão. Nunca tinha sentido um perfume tão bom e nem visto uma pessoa tão bonita, parecia uma artista do cinema americano, o cabelo de um preto azulado e, não fosse pelos olhos cor de mel seria mesmo aquela atriz, só que os olhos daquela eram cor de violeta. Sentiu-se feio, muito feio, com sua cara de índio narigudo. Achou todos feios, como se a moça que acabara de chegar tivesse tragado toda a beleza do mundo. Não desgrudava os olhos dela porque, quando eles pousavam em outra pessoa era um choque, um contraste, um mal estar, um horror. Ela trazia pela mão sua filhinha de dois anos, o mesmo cabelo escuro, só que não possuía seus traços delicados de boneca: os olhos eram enormes de um tom que, muitos anos mais tarde, ele classificaria de mel com menta, a fisionomia lembrando a de um felino. Quando disseram para a menina que este era o primo que ela viera conhecer, correu de braços abertos para ele e o abraçou contente. Ficou comovido, agradecido por ela não ter tido medo dele e de sua, agora imensa, feiúra. Levantou-a no colo e foram passear pelo quintal, ela apontando flores, plantas, janelas, toalhas no varal. Falava tudo e os olhos de gato não perdiam nada.

Depois não se lembrava mais da menina com clareza. Sabia que sempre estivera lá nas páscoas, natais, aniversários.Porém, a distância entre as idades deles não os fazia próximos.
Mas, daquele dia, ele se lembrava bem: as famílias estavam reunidas no grande apartamento do Comandante em Copacabana para um almoço com comidas do norte. Ele já estava namorando a Vívian, ex miss Leblon, moça de ascendência italiana, corpo escultural, de olhar macio e sorriso tímido. As famílias faziam mais gosto do que ele neste noivado que já estava marcado para dali a alguns meses, mas casamento era melhor que fosse assim mesmo, sem muita paixão, não. O importante era que a moça fosse direita, de família conhecida e prendada, preparada para administrar o lar, o marido e os filhos que, certamente, teriam. Estavam esperando só a família do “Turco” chegar para servirem o Pato no Tucupi que já estava recendendo da cozinha. Quando enfim chegaram, seus olhos demoraram-se por mais tempo na mocinha que devia estar com uns quatorze anos. Aquela criança engraçada e falante tinha-se tornado séria, não de uma seriedade sisuda, mas aparentemente serena, e de uma beleza marcante que misturava delicadezas da mãe e exotismos do pai. Tudo nela era de uma calma harmoniosa, os gestos de curvas sinuosas, o andar sem barulho de quem desliza suave, sem pressa, olhando cada coisa e cada pessoa na sua importância. A cabeleira negra tinha sido contida, aparentemente a muito custo, em uma fivela na nuca, o que lhe realçava o perfil bem desenhado e os olhos – que cor tinham esses olhos? A beleza, para ele,tinha mudado de eixo e significado. Agora era só mistério. A mocinha tinha percebido seu olhar silencioso e oblíquo de índio a acompanhar seus movimentos. Perturbou-se, pois para a adolescente que ela era, ele aparecia como um homem muito mais velho, atleta conhecido por sua cortada precisa  e saque indefensável nas competições interestaduais de vôlei. Era assim que o tinha visto uma vez: o ginásio lotado nas finais de campeonato, a gritaria das torcidas, e ele destacado dos outros pela mecha de cabelos brancos que nascia rente à fronte direita, sobre os cabelos muito pretos e lisos. O rosto magro e anguloso dava-lhe uma aparência de mais velho que seus vinte e cinco anos. Mas o corpo esguio de longas pernas e tórax largo, o tornavam um homem extremamente atraente, bem diferente do menino magrelo e desenxabido que ela conhecera. Não achava possível que uma menina como ela pudesse despertar seu interesse, logo ele, tão adulto, tão famoso, tão atleta, com uma namorada tão miss. Mas não se enganara, ele a olhava sem discrição. Tinha até evitado circular pela sala onde ele estava, um medo daquele olhar oblíquo e insistente.

De tempos em tempos, ele se lembrava daquela Família de Cinema e perguntava à tia dela, mulher do Comandante: “E a família do“Turco” ? E aquela filha dele, a Bonita... como é mesmo o nome dela?” Como um colecionador obstinado, guardava cada informação, vestígios dela, num álbum imaginário, onde formava seu próprio mosaico.
O casamento dele arrastara-se por vinte e dois anos. Não era feliz com a Vívian, eram muito diferentes, ela era fria, quase distante, ele ardia, ansiava por correr mundo, queria profissionalizar-se como atleta e ela vinha minando suas expectativas, que ele fizesse logo um concurso para o Banco do Brasil, falava em segurança e ele era um jogador, isso é besteira , vida de atleta neste país não dá sustento e sossego a ninguém. Os rumos de sua vida estavam para sempre traçados: passara no concurso do Banco, abandonara o esporte, tiveram um casal de gêmeos. Todos os viam como uma família ideal. Vívian possuía mãos de ferro cobertas por luvas de veludo. Era frágil e linda e dependente dele para absolutamente tudo. Mas foi quem capitaneou sua vida como entendeu.

O almoço de aniversário do pai tinha-se estendido, até a noite. A maioria dos convidados já havia saído e seus pais arrumavam a mesinha de jogo para algumas partidas com o inseparável casal de amigos, o Comandante e a mulher. Apoiou-se no parapeito da janela sentindo o cheiro forte da maresia misturada à brisa jasminada dos confins, olhando a praça iluminada lá embaixo, sábado à noite,  as pessoas indo e vindo, músicas e risadas. O Jangadeiro já estava ficando lotado. A mulher do Comandante olhou para ele com imensa ternura, percebia seu abatimento após o divórcio sofrido. Aproximou-se sem barulho, colocou a mão em suas costas magras, alisou-lhe os cabelos tão precocemente embranquecidos. Ele sorriu, passou o braço sobre o ombro da amiga tão querida e mais uma vez perguntou: __ “E aquela filha do“Turco”, a Bonita...Como ela está?Continua bonita? Com aquele olho de tigre?” A amiga sorriu: __“Continua, sim.” “Está sozinha?”  “Está”.

E levou-a pra dançar num bar à beiramar de Copacabana.
A vida estava, novamente, recomeçando.

sábado, 21 de julho de 2012

Carta na mesa


Rio,16-6-1964 (terça)
Criei coragem e agora coloquei a seguinte carta na mesa de cabeceira do papai:

“Querido paizinho
Já falei nesse assunto várias vezes com você. Por quê não larga o cigarro? Já sei que é difícil. Que é quase impossível. Mas você não diz que faz tudo para que tenhamos sempre o que há de melhor? Há alguma coisa melhor que você nesse mundo?
Paizinho. Peço-lhe encarecidamente. Você já pensou bem como nós ficaríamos sem você no mundo? O cigarro, está provado no mundo inteiro, que é o pior veneno que existe. Papai você é tudo para nós. Sem você, eu não sei como viveria. Vou fazer 15 anos daqui a pouco. Quero, como presente, que você largue o cigarro. Não pedi em cima da hora, não. Você  tem ainda um ano e meio, quase dois, para ir deixando. Pense bem. Nós todas o adoramos. Isto é por você e  também por nós. Por favor, paizinho. É a única coisa que eu quero de você. Não precisa festa, vestido, bolo, doces, nada. Não é fácil? Você tem uma força de vontade de ferro para tudo...viagens, negócios, tudo. Por quê não tenta com o cigarro? Você sabe, eu creio, que mal faz o cigarro. O pior mal do mundo. Um mal incurável. O câncer. É triste perder um pai por um vício à toa.
Não fique triste comigo, sim?
Um grande beijo da sua filha que lhe adora,
                                                                                                    
                                                                                                      AC
P.S: Não rasgue, ok?

Ele morreu de um enfarte fulminante, aos 41 anos, no dia de Natal , em 1967.

sábado, 14 de julho de 2012

Chateadíssima


25 de maio de 64 ( sexta)
Hoje fiquei chateadíssima, pois fui ler uma coisa engraçada para papai e para mamãe, e ela me disse bem no meio “pra copiar besteiras você tem tempo”. Olhei bem pra ela, e levantei-me sem dar palavra e vim-me embora. Agora estou no banheiro, e tenho que sair pois mamãe pode estranhar minha demora. Vou colar aqui esta carta. Creio que você, diário, a achará engraçada (como eu achei) e não me dará foras.

Alô , Doçura
Bem, Casey –se comigo que eu Kildarei de nosso filho. Traremos Hazel como babá do nosso filho Rebelde e moraremos na Rota 66, na Rua Sunset, na Cidade Nua.
Teremos nossa casa cercada de Laramie farpado, teremos também Rintimtim e sua esposa Lassie para nos proteger, e andaremos na Corda Bamba.
Nunca entraremos em Pânico, porque teremos Bonanza, Bonanza em tudo, e nem o Último dos Moicanos atrapalhará a Nossa Vida Com Mamãe, porque Papai Sabe Tudo.
Alice, se me aceitares, seremos Intocáveis e formaremos um Casal do Barulho. Faremos a viagem de núpcias pela Caravana, passando nossa lua-de-mel A Portas Fechadas no Jardim Encantado. Visitaremos Minha Amiga Flicka, que mora na Disneylândia, , depois, com Os Flintstones, mataremos uma galinha e se dará O Crime do Dia, fazendo assim o Almoço Com As Estrelas, onde brindaremos com Gin-Kana ou Kibon em homenagem a Cheyenne.
À noite, passaremos pela Praça da Alegria andando pelo Caminho da Felicidade e nas Noites Cariocas freqüentaremos o teatro do Vovô Deville.
Em caso de acidente, chamaremos a Brigada 8 e se houver suspeita de morte, chamaremos Peter Gunn, chegando Além da Imaginação de nossa felicidade.
Sòmente o Céu é o Limite!
Caso não me aceites, porei a minha vida no mar em Aventuras Submarinas, farei a Marca do Zorro e entrarei em Combate, e assim Eu e Você formaremos As Duas Faces do Oeste.
Vivendo a alguns Passos da Lei, ficaremos em Suspense, enquanto a Cidade se Diverte.
Do seu Mr. Lucky.

Endereço: Times Square, no. 77, Ponderosa.

sábado, 7 de julho de 2012

Meu Querido Diário...

Rio, 29 - 1 - 65

Oi

Estou chegando de um casamento. Foi o casamento do Zé Maria, filho da tia Alice e do tio Targino. Êle casou-se com uma moça ótima. Ela se chama Mirtes.
Foi tudo muito bonito. Só não me conformo com uma coisa: com o sermão que o padre fêz para ela, dizendo que o homem era o senhor, o chefe, o líder, o isso e o aquilo. E o que é a mulher nessa história tôda? " A esposa que deve amar e servir seu marido". Uma ova! Audácia! Quer dizer que o "boneco" chega, e ordena mulher faz isso, mulher faz aquilo, e ela vai correndo de quatro fazer e, ainda pedindo desculpas por não ter feito em 1 minuto, em vez de 2. Não tem nada disso, não! A mulher tem que amar o seu marido. Mas não amar o "senhor" e sim o homem. 
Outra coisa que detesto é homem que engana mulher. Se um dia meu marido me enganar, coitado dêle. Não sei nem o que eu faria. Todo mundo pensa que eu sou uma bôba, uma tôla, que qualquer maridinho à toa vai poder mandar...
A conversa está boa, mas eu tenho que me deitar.
                       Tchauzinho.


Feminismo adolescente...

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Sonho de Valsa é Humano, Demasiado Humano


"Onde reside a inocência? Onde há vontade de engendrar? E aquele que criar o que o ultrapassa é, a meus olhos, aquele cujo querer é mais puro.
Onde reside a beleza? Onde todo o meu querer me obriga a  querer; onde quero amar e perecer para que uma determinada imagem se não mantenha unicamente uma imagem." (Nietzsche)






Esquina de São José com Av Rio Branco. Vinda de alguma exposição no Paço Imperial, espero o sinal abrir no metro quadrado mais pluviométrico do Rio de Janeiro. Os pingos dos ares condicionados de todos os milhares de escritórios acima das nossas cabeças não cessam neste dia de verão. Calor. Os ônibus. Os carros. As vans. Mais gente vai parando a meu lado sob aquela garoa maluca esperando o sinal abrir. Que dura uma eternidade. Observo os bombons Sonho de Valsa, expostos como rubis ao sol sobre a banca do camelô , debaixo da marquise. Calor. Não me apetecem.
Bem na esquina há uma pequena árvore tentando bravamente sobreviver plantada num quadrado de terra, protegida por um cercadinho de metal. Nesse quadrado de terra, embaixo dessa arvorezinha raquítica, estão duas meninas,  a menor deve ter uns três anos e , a maior, uns cinco. Esqueço o sinal . Elas brincam como se estivessem no quintal de casa, naquele metrinho quadrado de terra, na esquina da Av Rio Branco e Rua São José, sob uma arvorezinha raquítica como elas. Me dou conta que este é realmente o quintal da casa delas. Presto mais atenção. A menor lambe um papel de Sonho de Valsa e o esfrega num pedaço de madeira, resto de algum caixote. Lambe e esfrega. Repete o gesto várias vezes, concentrada. Então o rostinho se ilumina e ela mostra para a outra Olha que lindo!!! Olhaaa! Que linnnndoooo!!! Faz também. O papel prateado do bombom, umedecido,  deixava marcas prateadas na madeira. O sinal abriu e fechou novamente. Mas eu estava vendo as meninas sonharem suas gravuras.

domingo, 10 de junho de 2012

No Tempo da Delicadeza

É necessário um cuidado extremo na lida com os sentimentos que envolvem aquele homem, pois a qualidade deles é de uma delicadíssima fragilidade .
Tão frágil, que suspende o fôlego. Tão intensa, que emudece. Tão incontrolável, que interrompe qualquer sensatez.
Cada letra escrita por ele, cada palavra dita por ele, desvelam universos incandescentes e incompreensivelmente enigmáticos para as pequenas luzes da razão.
Perguntar-me porquê, perdeu o sentido há tempos. Perguntar-me para quê, rendeu folhas e mais folhas de aquarelas e gravuras, que hoje cantam seu amor colorido em diversas paredes pelo mundo. Páginas e mais páginas de cadernos, preenchidos na solidão das noites ruivas. Palavras e mais palavras gravadas a fogo em outras memórias, que acolheram as faíscas cintilantes desses meus sentimentos frágeis por aquele homem. Sem nem saberem que ele existe.
Mas ele está lá. Sendo acolhido por pessoas que nem imagina. Transmutado em verso, cores, arrepios, olhos marejados. Imortalizado temporariamente em fragmentos de sonhos dos outros e outras com quem eu vou encontrando pelos meus caminhos.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Ainda não sei explicar


Hoje me pus a pensar em que momento eu comecei a me interessar pela arte. Melhor: em que momento eu comecei a me emocionar com a arte e pela arte. Qual a lembrança mais remota desse sentir tão quase dor, essa vontade perigosa de viver-criar-viver urgentemente. Porque, desenhar, toda criança desenha e eu já devia desenhar também, desde o jardim da infância na British School. Mas a necessidade, a tristeza que não se sabe de onde, a maturação lenta e dolorosa da imagem se formando ...na mente? no coração que dispara? na alma? no corpo todo?
E a lembrança veio inteirinha, viva.
Minha tia e madrinha estudava canto com um certo professor Talbat. As aulas eram no apartamento dele , creio que em Botafogo. E, às vezes, eu a acompanhava. Eu tinha por volta dos dez anos. Penso hoje que não devia ser um programa dos mais atraentes para uma menina da minha idade, que adorava praia, sentar quieta num sofazinho, por uma hora e meia, ouvindo a tia treinar as escalas, os trinados, e cantar umas canções incompreensíveis. O que me animava no início, eram as pastilhas de alcaçuz que ela chupava antes das aulas para clarear a voz, como ela dizia. Vinham numa caixinha que abria feito uma gavetinha. Eram pretas, com uma textura de jujuba, e na forma de um búzio. Às vezes ,em outras ocasiões, eu lembrava daquelas pastilhas e pedia que ela me desse uma. Jamais. Só ganhava uma, ao acompanhá-la às aulas de canto. Eram importadas e raras. E não eram balas, me dizia.
Até que um dia, eu reparei num quadro que tinha na parede da sala do professor Talbat. Era uma tela não muito grande, de uma paisagem. Como se o pintor estivesse em cima de um morro e pintasse o rio que corria lá embaixo. Esse rio era margeado , dos dois lados, por uma floresta fechada. O horizonte sugeria um fim de tarde sereno, com céu azul pálido. O rio fazia uma curva leve para a direita e se embrenhava na mata novamente. Não lembro em qual das vezes, se da segunda, terceira ou quarta ,em que sentei naquele sofazinho, eu percebi o quadro. So sei que, a partir do momento em que eu tomei consciência dele, as idas às aulas de canto do 'Messiê' Talbat eram momentos esperados com ansiedade. Para estar perto daquela imagem. Porque, enquanto o 'Messiê' tocava piano e minha tia, que tinha uma bela voz de contralto,cantava, eu viajava naquelas águas , às vezes num barco à velas, às vezes percorrendo a pé as margens sombrias e frias, os pés úmidos ao pisar as folhas caídas. Principalmente me intrigava o que haveria depois da curva. Um castelo em ruínas. Uma cachoeira caindo em precipício. Um príncipe a cavalo. Um pirata invencível.Tribos de índios. Uma praia com um navio naufragado. Imaginava que, quando chegasse lá , na curva do rio, já seria noite, porque meu barco nunca era a motor e, às vezes, era mesmo uma canoa a remo.
Aquela pintura me fazia habitar histórias incríveis, repletas de imagens, uma capacidade de inventar, criar e recriar, que até então eu deconhecia por completo. Ainda por cima, com a incrível trilha sonora de belas árias, acompanhadas pelo piano correto do francês Talbat. Eu não podia mais existir sem isso. Pra mim, aquele era o quadro mais lindo do mundo e ficar muito tempo distante dele era como se eu perdesse o dom de imaginar tantas aventuras. Por isso me lembro tão bem dele, até hoje. Como se eu o tivesse visto ontem, na parede em frente ao sofazinho, no apartamento de Botafogo. Olhava para ele o tempo todo que duravam as aulas, também para trazê-lo para dentro de mim, para que ele se tornasse parte de mim, para que ele se transformasse na fonte eterna daquele sentimento experimentado. Sentimento de arrebatamento estático, de um quase transe, quando não me importava mais nada que não fizesse parte daquela minha vida dentro da imagem do rio correndo no meio de uma floresta verde e sombria. A paixão da alma de uma menina de dez anos.
A partir dessa idade é que passei a pedir caixas de lápis de cor e cadernos de desenho, fora do material escolar. Minha tia e madrinha foi quem me deu uma caixa enorme de Caran D'Ache e um belo caderno de papel canson, com uma capa lisa preta. Achei chique aquela capa lisa preta. Digna de artistas.
Foi então que descobri que a Arte, em todas as suas formas, me conectava com o que eu sentia diante da pintura da casa do professor de canto. O que eu sentia, continuo sentindo ainda hoje, às vezes com um filme, com uma música,com um livro e quando crio textos , imagens, desenhos, pinturas. Ainda hoje, me sinto em perigo.
O que eu sentia, ainda não sei explicar.

"Só o que se pensa é que se pode comunicar aos outros.
O que se sente não se pode comunicar.
Só se pode comunicar o valor do que se sente.
Só se pode fazer sentir o que se sente. (...)
O sentimento abre as portas da prisão com que o pensamento fecha a alma.
A lucidez só deve chegar ao limiar da alma.
Nas próprias antecâmaras do sentimento é proibido ser explícito.
Sentir é compreender.
Pensar é errar.
Compreender o que outra pessoa pensa é discordar dela.
Compreender o que outra pessoa sente é ser ela.
Ser outra pessoa é de uma grande utilidade metafísica.Deus é toda gente."
Fernando Pessoa

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Os Sete Samurais




Laerte, meu amigo nissei-paulistano-artista-violeiro-corinthiano, estava recebendo 6 japoneses vindos diretamente de Tóquio, para gravar um disco de música brasileira aqui no Rio. O cantor,  eles já tinham e veio junto: um cara jovem, cabelinho espetadinho de gel, camisão verde água com risquinhos gráficos em tons néon, grandes e quadrados óculos de aro vermelho, calça clara e sapatênis. Era a estrela do grupo. Com toda essa pinta new wave, auge da moda em 1987, ele cantava i-gual-zi-nho ao Paulinho da Viola. ‘ Não quero maaaaais...amaraninguém!...”, fazendo um gesto largo com a mão direita e a esquerda no bolso da calça. Além da letra das músicas, ele não falava uma palavra de português. Tinham todos vindo ao Rio por um dilema surgido lá do outro lado do mundo : não havia japonês que conseguisse tocar pandeiro com o ritmo dos brasileiros. Precisavam de um pandeiro autêntico, o tal auxílio luxuoso que já dizia o Melodia. Sem pandeiro, não dá. Como eu entro nessa história? O Laerte me pediu para ajudá-lo na recepção aos japas, que passariam de janeiro a fevereiro aqui, aproveitando também pra irem à Sapucaí ver a Mangueira. Eram TODOS Mangueirenses. Entre uma gravação e outra, eu deveria levá-los a passeios, shows, sugerir restaurantes, coisa e tal. Eu havia trazido comigo de São Paulo o meu fusquinha, meu inseparável e fiel escudeiro, o famoso Boy da Mooca, amarelo manga, ‘c’ôs vidro rrrêibãn e as rrroda de magnésio, mâno!’. Então, era ir colocando o que coubesse de japa dentro do Boy e, o resto ia de táxi atrás, tipo siga aquele fusca.
No grupo havia o Jim Nakahara, que falava melhor inglês e com quem eu mais me comunicava. Era o produtor do disco. Conversas que vão e vem, ele me contou que dirigia uma revista só de música brasileira em Tóquio. Tudo começou quando ele tinha 18 anos e estava ouvindo o radinho em casa enquanto estudava, quando tocou a 'música mais linda do mundo'. A voz do homem que cantava era celestial, a melodia belíssima e nostálgica, que o mergulhou em um estado de alma que ele ainda não havia experimentado. Um encantamento, uma necessidade de ouvir aquilo pra sempre, uma urgência de saber tudo sobre aquela música, da qual ele não compreendia uma só palavra. Ligou pra rádio. Era um cantor negro, do Brasil e a música se chamava Ponta de Areia. Durante anos, Jim tentou assistir a um show do Milton ao vivo, mas sempre se desencontravam. Jim chegava em Berlim, e o Milton tinha ido embora na véspera. Quando Milton foi a Tóquio, Jim estava em Paris. Enquanto eu ouvia o relato, mal aguentava pra dizer ao Jim: então, my friend, você vai finalmente ver um show do Homem. Esta semana , no Maracanãzinho, Milton , Wagner Tiso, Novelli e mais uma galera, vão comemorar 20 anos de Travessia. E nós vamos!
E fomos.
Maracanãzinho completamente lotado. Eu , Tica e os Sete Samurais sentamos na arquibancada bem de frente pro palco. Platéia enlouquecida, saía de um silêncio abissal enquanto as músicas eram tocadas, para uma explosão ensurdecedora de gritos, aplausos, assovios, euteamos, silenciando outra vez aos novos acordes. O acender de isqueiros (naquele tempo não tinha celular, gente...) trazia o céu pro chão. Claro que o Milton cantou Ponta de Areia à capela. E o Jim Nakahara , do meu lado, chorou emocionadíssimo. 
Saímos de lá , Tica , eu e os japas. Entra um, entra dois, entra três, entra quatro no fusca. O resto pegou um táxi.  Viemos cantando pelo caminho em estado de euforia total. Foi quando um dos Samurais, que não me lembro mais o nome e que estava sentado no banco do carona, se debruçou metade pra fora do carro e gritou Huriiiiiiiiishiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!! , bem quando a gente estava no Túnel Rebouças rumo a Ipanema. E aquele fusca bizarro passava pelo túnel gritando Hurishiiiii  que, pelo que me disseram, significa estou feliz. Huriiiiishiiiiiiii!!!! Huriiiiiiiiishiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!! 
Fomos pro Garota de Ipanema, esquina de Vinicius com Prudente ( Para os antigos, Veloso, esquina de Montenegro com Prudente), que obviamente estava lotado. Atravessamos a rua e pegamos uma mesa grande num bar que se chama 'Vinicius' mas que todo mundo chama de Niterói. Porque é do outro lado. Os Samurais estavam impossíveis. Eram a atração do Niterói. Cantavam , batucavam, o Japa New Wave fez a sua performance de Paulinho da Viola. Lá pelas tantas, começaram a cantar o samba da Mangueira do ano anterior: “ Tem ximxim e acarajé, tamborim e samba no pé..” Daí , re-al-men-te o bar parou. Sete Samurais cantando, batucando e dizendo: ‘bréque'... é surreal demais , mesmo pro Rio de Janeiro onde ninguém repara em mais nada faz tempo. Na outra mesa um sujeito comentou com a mulher: Cara, eu acho que eu já bebi demais...
Muito anos depois, uns vinte talvez, num sábado à tarde, eu estava caminhando pela orla de Ipanema e resolvi voltar a pé pra casa pela orla da Lagoa. Cortei caminho pela Vinícius. Na frente da lojinha Toca do Vinícius -onde se vende TUDO sobre bossa nova- tinha um aglomerado de gente, um microfone, uns músicos, tudo isso na calçada. O dono da loja estava ao lado de um japonês...o Jim Nakahara! Não mudara nada. Camisa de malha, calça jeans, tênis e o cabelo comprido amarrado pra trás. No microfone disse que gostava muito da música brasileira, que era a vida dele. Pedia desculpas por não falar tão bem o português. Meu coração acelerou. Será que ele vai se lembrar de mim e daqueles dias malucos? Me arrependo até hoje de não ter ido lá conferir.

http://www.youtube.com/watch?v=aj4U5BvdTII

domingo, 13 de maio de 2012

Dia (a dia) das Mães

Eu tinha 28 anos e trabalhava em uma loja de tecidos finos para decoração na Oscar Freire, para pagar os estudos na FAAP à noite e completar o orçamento doméstico apertado. As coisas não eram fáceis mas eu gostava muito da vida que tinha escolhido pra mim.
Só que, naquele dia, eu estava arrasada. Tinha ficado em dependência em uma matéria em que o professor estava mais interessado em mim do que no meu trabalho. Durante a manhã, tinha discutido com o gerente da loja, um japa que implicava toda vez que eu puxava, debaixo do balcão, minha bíblia de História da Arte na época- La Historia Social de la Literatura y del Arte, do alemãozão marxista Arnold Hauser- para estudar, enquanto as ricas senhoras não apareciam para me fazerem, muitas vezes, baixar os pesadíssimos rolos das prateleiras sem levarem nada. Iam pensar. Estava eu a pensar no que ia fazer para o almoço do meu filho , então com 6 anos, improvisando com o que tinha na geladeira, quando me dei conta que a luz tinha sido cortada por falta de pagamento.
Sentei na sala e chorei.
Foi quando ele, o meu pequeno de 6 anos, apareceu com uma bola embaixo do braço, de Kichute, pronto pra descer e jogar com os amiguinhos. Ao me ver aos prantos, o que não era comum,largou a bola, sentou no sofá a meu lado, pegou na minha mão e perguntou porquê.
Desabafei. Contei pra ele tudo. Do esforço que era essa vida de mulher-mãe-estudante-trabalhadora-numa-cidade-como-São Paulo-sem-família-pra-ajudar. E ainda por cima ficar sem luz? E chorava.
Ele ouviu tudo segurando a minha mão. Quando me calei, ele disse com aquele olhos de ameixa em calda: você sabe que eu sou seu amigo, né? Enxuguei as lágrimas , perplexa. Sei, meu querido. Me pediu que esperasse um pouquinho. Correu no quartinho dele e trouxe a vitrolinha de pilha pra sala. Voltou pra lá de novo, e trouxe um disquinho compacto que eu havia dado pra ele e que gostávamos de ouvir juntos.
E então, o Gil iluminou o mundo cantando "Woman no Cry". Não, não chore mais...rodando na vitrolinha. Ficamos de mão dada até a música acabar, enquanto eu era invadida pela certeza de que eu tinha, sim, um pequeno grande amigo. E que "tudo tudo tudo"ia dar pé.
Ontem à noite, no friozinho de Teresópolis, comendo uma pizza deliciosa num restaurante aconchegante, brindando com Carmenère o dia das mães, sentada ao lado do meu grande amigo, da mulher dele e de seu filhinho, relembramos essa história.
Felicidade é a certeza, após tantos anos, que "tudo tudo tudo deu pé". Que pelo torto , fiz direito. Saúde!


Amor Fati (Nietzsche): Amor ao destino - afirmação da vida, das circunstâncias, daquilo que somos. Uma resposta positiva à angústia da existência.




http://www.youtube.com/watch?v=b221wm5fwJQ

terça-feira, 8 de maio de 2012

Pedacinho do Céu


 
Dia 30 de dezembro de 1988 deu um praião. Almoçamos em Grumari, peixada à brasileira com pirão apimentado. Tica e Laerte tinham chegado na véspera de São Paulo, para passar o Reveillon no Rio. Inventei de voltarmos da Barra pelo Alto, pra ver o crepúsculo aos pés do Redentor e depois descer por dentro da mata, até o Horto.
Já passava das seis e meia quando percebemos que tínhamos errado o caminho. Alguma bifurcação lá atrás, alguma placa não percebida, nunca que chegávamos ao Corcovado e a estrada ficando cada vez mais estreita. E a noite caindo.

Enquanto procurávamos um lugar mais largo para fazer a manobra e voltar, surgiu um PM, armado com um fuzil, bem no meio da estrada, fazendo sinal para que parássemos o carro. Veio se aproximando devagar, olhar intruso de cão farejador. Tentando disfarçar meu nervosismo  - tremo quando vejo um PM desde 1968 - gentilmente expliquei que levava amigos  paulistas para o Corcovado, ao mesmo tempo que, por dentro, me sentia uma besta por ter errado um caminho tão conhecido. O PM falou que aquele lugar era proibido. Área de Segurança Nacional. Que nós deveríamos voltar imediatamente. Explicamos que não dava pra fazer manobra, que a estrava estava muito estreita. Nisso, ele mandou -PM não pede, né? - que chegássemos um pouco mais a frente que haveria espaço suficiente e seguiu na frente, acenando com a mão, agora já como um...flanelinha, eu diria. Pode vim. Pode vim... Quando estávamos nos preparando pra manobrar e sair dali correndo como se não houvesse amanhã, o PM disse que tinha mudado de idéia. Que parássemos o carro e que descessemos pra ver a vista, já que estávamos ainda mais alto que o Corcovado. Nos entreolhamos em pensamento, porque ninguém ou-sou desviar os olhos do homem. Ensaiei um sorriso, não, muito obrigada, tá ficando tarde, sabe como é...Desce! Desce! Vocês vão gostar. Pode estacionar aqui. Laerte desempatou, baixinho, dizendo que não convinha contrariar.
O PM, agora mais falante, seguia na frente:“Hoje eu estou de serviço aqui em cima, mas para não ficar sozinho, eu trouxe a minha esposa, o meu cunhado ....e o meu parceiro aqui, que também resolveu nos acompanhar nesse...churrasquinho...”
Atrás da  única construção do local, uma casinha de janelas verdes, estas pessoas estavam sentadas em cadeiras de praia em volta de uma churrasqueira portátil, assando pedaços de picanha, linguiça e frango. O Parceiro e o Cunhado tocavam chorinho em dois  violões. Abaixo, a cidade do Rio de Janeiro começava a acender suas luzes.
_ “Vocês estão servidos?” A Esposa do PM, de bermuda de lycra azul turquesa e camisão da Mangueira, abriu um sorriso simples e estendeu um pratinho com farofa, frango e maionese. A surpresa era geral mas a simpatia do grupo, o cheiro bom da carne assando, a vista esplendorosa e a melodia  executada por aquela dupla inesperada de músicos, foi deixando todos muito à vontade. Eu começava a achar que o errado tinha dado certo. Já era noite fechada quando o Parceiro nos levou por uma trilha na mata , apenas com uma lanterna. De repente, emoldurado pela vegetação densa e negra, iluminado, surgia o Cristo Redentor em uma visão deslumbrante e inédita, de cima e de trás. A cidade e suas luzes, mais além, parecia um cenário. A zoada noturna da Mata Atlântica, poderosa, transformava a cena em uma irrealidade de sonho. Emocionados, reconhecíamos o privilégio de estar onde estávamos, bem embaixo das antenas do Sumaré.O Parceiro nos lembrava isso a todo momento: Poucas pessoas já estiveram onde vocês estão agora...
Alguém aí toca cavaquinho? Perguntou o Cunhado. Eu, respondeu Laerte, provocando risadas na Família PM. Um Japonês?! Pois o Laerte é o japonês mais brasileiro que eu já conheci. Toca viloão, cavaquinho, pandeiro, além de ter morado durante um tempo aqui no Rio, bem no pé do Morro do Salgueiro, na Tijuca . E tem mais: é Corintiano doente. Sabe tudo!
E aquele trio, mais inusitado ainda de músicos, começou a tocar todas as pérolas da MPB. Cartola, Lupiscínio, Chico, Djavan, João Bosco. Eu soltei a voz e cantei todas! Dois PMs uniformizados e armados. Uma mulher de bermuda laicra e camisão da Mangueira. Um sujeito de bermudão. Duas mulheres de canga enroladas por cima dos bikinis e havaianas nos pés ainda cheios de areia. Um japonês de bermuda e camiseta por cima da sunga. Dois violões e um cavaquinho. 
Foi quando o PM puxou: “Caminhando e cantando e seguindo a canção/ Somos todos iguais , braços dados ou não...”
_ “Nas escolas, na ruas, campos, construção...” Eu respondi com a voz clara e o olho fixo no PM. 
Continuamos cantando só nós dois. O resto do povo congelou. O Parceiro parou de tocar.
_ “Há soldados armados, amados ou não"... 
_Você é bem vermelhinha, né não? Comunista??? Onde você estava em sessenta e oito? 
A Esposa tocou com a ponta da sandália havaiana no bute do marido.
_ “Provavelmente correndo de você, na avenida Rio Branco...Eu era secundarista.”
_ “ E eu estava mesmo na Rio Branco, baixando a borracha”.
_ “Eu também estava, chutando de volta pra vocês as bombas de gás. Você foi um dos que imprensou a gente na porta da Candelária? ”
_ “Eu era do chão, não de Cavalaria. Tinha vinte e poucos anos e vivia apavorado: vocês eram os Comunistas, os Subversivos, armados até os dentes pela União Soviética! Eu sabia todas essas músicas. Achava essa do Vandré até bonita, principalmente essa parte que você cantou aí, a dos soldados amados ou não...” 
(Nós, estudantes secundaristas, armados até os dentes??? Só se fosse de coragem...) 

Tenso. 
Laerte, a essas alturas, era o único a dedilhar "Pedacinhos do Céu" no cavaquinho. A zoada da mata parecia bem mais alta , agora que todos estavam em silêncio.
O PM levantou-se bruscamente com a mão estendida na minha direção. 
_Somos sobreviventes e hoje podemos viver essa festa aqui em cima. 
Os dois violões voltaram a acompanhar o cavaquinho. Eu, bastante hesitante ainda, estendi a mão de volta e cumprimentei o PM sorridente e conciliador. Afinal, pensei, a julgar pelo tamanho da barriga , ele não corria mais atrás de ninguém fazia muito tempo. 
A partir daí, a Familia PM foi entrando num estado emocional crescente  e ficavam nos agradecendo , a todo instante, o fato de termos alegrado a noite deles, tocando e cantando todas aquelas músicas maravilhosas, etc. Toda vez que dizíamos que estava na hora de ir, era um drama. Tá cedo, fica mais, olha que tá saindo outra carninha, agora que a gente tá amigo... (ahn?)
Saímos de lá depois da meia noite, com o PM, a Esposa, o Cunhado e o Parceiro nos levando até o carro, com abraços e beijos, deixando o telefone deles e insistindo muito para que fôssemos passar o Reveillon lá em cima. A Esposa estava em lágrimas, dizendo que tinha gostado muito de nós, e nos beijava e nos abraçava, e batiam na janela, e davam adeus, e voltem! voltem, por favor! não vamos deixar de nos ver!

Nos desvencilhamos e descemos rápido, como se não hovesse amanhã.
 http://www.youtube.com/watch?v=fP196ZptB0U

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Encantamento

Eu estava no rio Design do Leblon, fazendo uma horinha entre uma aula do Midrash e outra para um grupo particular em Ipanema. Lia um livrinho que contém um ensaio do Sartre sobre a obra do Giacometti, quando o celular tocou. Era minha nora. Disse ela: 'Não sei o que vc vai fazer com essa informação, mas seu neto está lá em casa choramingando e diz que está com muita saudade da vovó Cris. Diz que está com saudade de você contar pra ele as histórias do Caminhão de Laranja. A babá já se ofereceu pra contar, mas ele insiste que NINGUÉM sabe contar, só a vovó Cris!'.
Em seguida liguei pra ele. " Vovó, você está no seu trabalho?" Estou, meu amor. Mas também estou morrendo de saudade de você. "Quando você acabar o seu trabalho, a gente se liga, tá vovó?"
Fui dar aula em estado de graça.
Corri pra casa depois e, ao ver que a luz do quarto dele ainda estava acesa, parei lá antes de subir pro meu apê.
A expressão de encantamento de seu olhar quando eu cheguei de surpresa, é inesquecível. E contamos a história do Caminhão de Laranja, cujo motorista é o Laranjeiro e o parceiro dele é o Laranjado. Uma história sempre inventada por nós dois, que não tem fim.
Sartre e Giacometti não tiveram netos. Nem imaginam o que vivi hoje.

A Maravilha Dourada


A Baíta tinha o cabelo mais lindo do mundo. Pelo menos para nós, as encaracoladas da classe. Era liso, sem um quebradinho, sem pontas duplas, macio e de caimento perfeito. Reto, pelo meio das costas. O nosso sonho dourado - sim, porque, além de tudo, era dourado, como que salpicado de purpurina.
A Baíta tinha o cabelo mais lindo do mundo. Isso era uma unanimidade incontestável.
Todos os dias, quando acabavam as aulas,ela sacava da bolsa uma escova e escovava a maravilha. Para um lado. Para o outro. Da nuca pra frente. Da frente pra trás. E a maravilha dourada chicoteava o ar na sua lisura perfeita e brilhante, na contraluz do sol que entrava pelas janelas.
Certo dia, estávamos um grupinho a observar o espetáculo, quando uma lembrou que podíamos perguntar o que ela fazia pra que aquele cabelo fosse daquele jeito. Quem sabe um xampú especial, um creme importado do Mercadinho Azul, um procedimento diferente ao lavá-lo. A eleita pra fazer a tal pergunta fui eu. Vai você, vai você. Fui.
Seu cabelo é tão lindo, Baíta... o quê você faz para que ele fique assim tããão...A resposta veio entre uma escovadela e outra. Nada!...eu lavo...e...solto...
Voltei para o grupo com a notícia bombástica. Ela lava e solta. Só??? Só. Era a Graça Divina  mesmo. Estávamos inconformadamente condenadas às nossas touquinhas, alisantes, ferro de passar e ao desespero quando a maresia vinha arrepiar nossos esforços e rapidamente nos transformava em medusas, no meio de uma festa, por exemplo. Se a festa era na Vieira Souto, Delfim Moreira ou Atlântica, ai de nós...
Passaram-se vinte anos. O meu mundo deu tantas voltas que me esqueci quantas foram. Estávamos eu e a Mônica Leite Costa numa fila de cinema em Copacabana quando...não é a Baíta??? Acenos, beijos, sorrisos, abraços, há quanto tempo, você está ótima, vocês também...Mas logo notei uma coisa: a maravilha dourada havia sido cortada e estava...enrolada! Ou permanete ou bigudí, pensei. Nessa época pós hippie, eu tinha assumido a juba de cachos. Baíta pegou um pouco no meu cabelo e disse: Seu cabelo está tão lindo...o quê você faz? Esperei 20 anos mas dei a resposta. Nada...eu lavo e solto...
Hoje, pelas fotos do face, vejo que ela continua com o cabelo mais lindo do mundo, agora com reflexos em ouro e prata.
E eu agradeço todo dia à bendita tecnologia capilar que mantém os meus lisos e macios, podendo igualmente lavar e soltar. Liberdade, liberdade abrindo as asas sobre as nossas arrepiadas cabeças. Sim, porque as drogas dos cabelos brancos não cacheiam mais. Só arrepiam.

A.C.N.