Eu tinha 28 anos e trabalhava em uma loja de tecidos finos para decoração na Oscar Freire, para pagar os estudos na FAAP à noite e completar o orçamento doméstico apertado. As coisas não eram fáceis mas eu gostava muito da vida que tinha escolhido pra mim.
Só que, naquele dia, eu estava arrasada. Tinha ficado em dependência em uma matéria em que o professor estava mais interessado em mim do que no meu trabalho. Durante a manhã, tinha discutido com o gerente da loja, um japa que implicava toda vez que eu puxava, debaixo do balcão, minha bíblia de História da Arte na época- La Historia Social de la Literatura y del Arte, do alemãozão marxista Arnold Hauser- para estudar, enquanto as ricas senhoras não apareciam para me fazerem, muitas vezes, baixar os pesadíssimos rolos das prateleiras sem levarem nada. Iam pensar. Estava eu a pensar no que ia fazer para o almoço do meu filho , então com 6 anos, improvisando com o que tinha na geladeira, quando me dei conta que a luz tinha sido cortada por falta de pagamento.
Sentei na sala e chorei.
Foi quando ele, o meu pequeno de 6 anos, apareceu com uma bola embaixo do braço, de Kichute, pronto pra descer e jogar com os amiguinhos. Ao me ver aos prantos, o que não era comum,largou a bola, sentou no sofá a meu lado, pegou na minha mão e perguntou porquê.
Desabafei. Contei pra ele tudo. Do esforço que era essa vida de mulher-mãe-estudante-trabalhadora-numa-cidade-como-São Paulo-sem-família-pra-ajudar. E ainda por cima ficar sem luz? E chorava.
Ele ouviu tudo segurando a minha mão. Quando me calei, ele disse com aquele olhos de ameixa em calda: você sabe que eu sou seu amigo, né? Enxuguei as lágrimas , perplexa. Sei, meu querido. Me pediu que esperasse um pouquinho. Correu no quartinho dele e trouxe a vitrolinha de pilha pra sala. Voltou pra lá de novo, e trouxe um disquinho compacto que eu havia dado pra ele e que gostávamos de ouvir juntos.
E então, o Gil iluminou o mundo cantando "Woman no Cry". Não, não chore mais...rodando na vitrolinha. Ficamos de mão dada até a música acabar, enquanto eu era invadida pela certeza de que eu tinha, sim, um pequeno grande amigo. E que "tudo tudo tudo"ia dar pé.
Ontem à noite, no friozinho de Teresópolis, comendo uma pizza deliciosa num restaurante aconchegante, brindando com Carmenère o dia das mães, sentada ao lado do meu grande amigo, da mulher dele e de seu filhinho, relembramos essa história.
Felicidade é a certeza, após tantos anos, que "tudo tudo tudo deu pé". Que pelo torto , fiz direito. Saúde!
Amor Fati (Nietzsche): Amor ao destino - afirmação da vida, das circunstâncias, daquilo que somos. Uma resposta positiva à angústia da existência.
http://www.youtube.com/watch?v=b221wm5fwJQ
5 comentários:
lindo, lindo. Parabéns Marcio Fonseca
Linda e comovente história, nós mães que demos tudo que tínhamos, que bravamente lutamos para estudar, trabalhar e cuidar dos nossos filhotes temos muitas historias para contar. As minhas historias com certeza são semelhantes as suas. Um filho a cada ano de faculdade, trabalhando nos domingos e nos feriados, dureza total, cuidar da casa, das crianças... as vezes eu sentava na escada e chorava, enquanto as crianças corriam no andar de cima. Hoje, não consigo compreender de onde vinha tanta força só sei que valeu apena e faria tudo de novo. A recompensa é enorme, vendo que meus 3 filhos são seres humanos de verdade e tendo 2 netos que transbordam o meu coração. Com todo orgulho do mundo afirmo SOU UMA MULHER REALIZADA E MUITO FELIZ COM A FAMÍLIA QUE TENHO. Obrigada meus Filhotes!
Estou aqui com os olhos cheios de lágrimas pensando na força das mães. Cris, você é uma SUPER mulher! Linda história! bjos da sua, infelizmente ex-aluna, Juliana Sá. *o infelizmente é pela distância geográfica.
Que texto lindo e emocionante, Anacris! Como é bom olhar para trás, valorizar cada momento vivido e colher os frutos bem semeados... Beijos!
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